Vivi um momento poético hoje. Voltava pra casa de bicicleta ouvindo meu jazz favorito, e eis que encontro pelo caminho, andando rápido e com olhar baixo, o cachorro Negão: um bonito e simpático vira-lata que foi adotado por uns vizinhos nossos, a Ana e o Ângelo.
Logo percebi que tinha fugido, pois andava com pressa, como alguém que tem algo muito importante e inadiável a fazer.
Deixei rapidamente a bicicleta no chão, pois estava contentíssima em vê-lo.
Já ele, enquanto me abanava o rabo em sinal da nossa velha e firme amizade, pedia, com olhos piedosos, pelo amor de Deus, que não o levasse de volta. Foi de partir o coração!
Confesso que por milésimos de segundos me passou pela cabeça deixá-lo seguir adiante. Afinal, eu sei bem como é amar a liberdade.
Mas foi uma fita azul, uma linda e singela fita azul, que envolvia o seu pescoção, que me fez desistir de ser cúmplice em sua fuga.
Olhei para aquela fita e me dei conta de quanto amor e dedicação havia nela: de como o Negão havia chegado magricela e doente e de como agora estava lindo e forte; de como a vida na rua, apesar de livre, pode ser dura e cruel; e de como é bom termos uma Ana pra nos amar e colocar lindas fitas em nós.
E foi assim que eu e o Negão terminamos pacificando os nossos dois corações vagabundos.
Sentados lado a lado, ficamos um tempão olhando o horizonte, o que deve ter sido uma cena estranhíssima para os passantes: uma mulher e seu cão olhando em silêncio para o “nada”.
Mas não importa. É difícil mesmo um amante da liberdade ser compreendido por inteiro, pois a consciência da liberdade assusta os que ainda dormem para si mesmos.
Mas eu sabia que aquele episódio estava me ajudando a elaborar algo muito profundo sobre a verdadeira liberdade que eu pensei então ser aquela que se experimenta intimamente.
Diz-se que livre é o homem que faz o que quer, mas eu aprendi neste dia com meu amigo Negão que livre mesmo é o homem (e o cão) que procura viver sendo fiel a si mesmo.
Acho que foi a fidelidade do Negão ao seu próprio desejo que me fez achar aquela cena tão bonita e inspiradora na ocasião.
Como é bom poder sentir o gosto da liberdade quando temos a doçura de uma Ana e uma fita azul como se fosse o céu nos esperando. Pois, quando não temos essa oportunidade, nos perdemos na liberdade e esta, acaba se tornando libertinagem.
E, eu, que tive a doçura de uma Ana por um tempo posso me sentir em paz diante dessa vida dura e cruel.