O homem evita aquilo que o assusta, sendo este o caso da velhice. O que o torna quase sempre equivocado e ingênuo sobre a sua chegada.
Isso significa, por exemplo, que o desejo de prolongar em demasia a vida é quase sempre do moço, mas nunca do velho, conhecedor íntimo da sua degradação, da qual evidentemente nunca poderá falar. Daí talvez não haver nada mais deprimente e tristonho que um velho otimista.
Diz-se a ele que se mova, quando tudo já lhe dói; que seja otimista, com os filhos infelizes; que ame a vida, quando todos já se foram; e que seja grato, quando lhe falta dinheiro. A tal ponto se mente em nossa sociedade sobre tudo.
Um dos sinais de que se mente sobre os velhos são os altos índices de suicídio entre eles, podendo isso significar: tanto a última tentativa de um homem reaver sua dignidade, quanto o desespero de não encontrar quem lhe reconheça a dor.
Conclui-se daí que, encorajando-se a um olhar objetivo sobre a velhice, ver-se-á que ser velho é muito difícil, ainda mais quando se é pobre. O que corresponde, no Brasil, à 70 % da população velha, que vive apenas com um salário mínimo por mês.
Tendência preocupante que acompanha muitos países do mundo, graças ao aumento da longevidade.
Destes, muitos vivem na miséria ou são obrigados a continuar trabalhando, frequentemente para ajudar os filhos, muitos destes vivendo com eles.
O mito dos filhos como amparo aos pais na velhice
Tal realidade desmorona o mito pessoal de muitas pessoas que ainda insistem na ideia ultrapassada de que filhos significam amparo financeiro e afetivo na velhice.
Ora, observando velhos da minha convivência e psicanalisado alguns outros, tenho observado que, na prática, filhos adultos constituem fonte de preocupação e transtorno para pais velhos, muito mais do que amparo e proteção para eles.
Sendo amparo e fonte de proteção outros fatores tais como: ter uma boa saúde, residência para morar, contar com uma boa fonte de renda, um companheiro de quem se goste, amigos, atividades diárias que lhe dêem sentido e algum dinheiro para viajar.
Filhos não são boas fontes de amparo para os pais na velhice porque: gastam-lhes as míseras aposentadorias, torcem para que morram logo para venderem-lhes os imóveis e gastarem a herança, fazem empréstimos consignados em seu nome, divorciam-se e voltam a morar com eles, e lhes dão desgosto e tristeza por serem maus pais. Negligência e sofrimento dos netos que os avós nunca conseguem suportar sem intervir.
E quando se tornam bons filhos, vão viver e lutar pelas próprias vidas. Que é como se deve ser.
Conclui-se daí que tal mito não se comprova na realidade, e só parece persistir na mente das pessoas como forma de buscarem algum tipo de reconhecimento, nos filhos, pelo extenuante trabalho que significou criá-los.
Desejo até bem compreensível e justo, porém ilógico, já que, além de ter ou não um filho ser escolha dos pais, nada garante a gratidão daquele em relação a estes.
Familismo e religião no Brasil
Ainda nesse aspecto, no Brasil, em que o familismo e religião impõem rígidas normas sociais, reprova-se severamente filhos que se distanciam dos familiares e “negligenciam” seus velhos pais.
Tal situação culmina em um aparente menor estado de solidão entre os membros familiares, já que se forçam a ficarem juntos para: manter as aparências, evitarem o julgamento alheio e, sobretudo, o implacável sentimento de culpa que sentirão, caso infringam tão sagrada lei: a de amar incondicionalmente pais e irmãos.
Sendo, nesse aspecto, para Freud, o sentimento de culpa um dos maiores agregadores dos agrupamentos humanos, dentre eles a família.
Outras culturas
Já em outras culturas, em que elementos como liberdade de escolha e individualidade são preferidos em relação ao espírito de rebanho, enfrenta-se o problema da velhice com outros recursos, por exemplo, criando-se condomínios ou prédios de velhos.
Situação que implica, de um lado, em vínculos familiares mais fracos e pessoas mais solitárias e, de outro, em menos expectativas frustradas por parte dos velhos e menos culpabilidade nos filhos.
Tal observação comprova o vínculo diretamente proporcional entre dedicação parental e expectativa de cuidado na velhice, onde quanto mais os pais “se dedicam” aos filhos, mais esperam ser cuidados por estes. E quanto menos se dedicam à eles, menos esperam em troca.
Solidão ou culpa?
Cabe nesse aspecto a cada país, cultura e indivíduo escolher o que lhe faz mais sentido na própria velhice: ter a companhia dos filhos instaurando-lhe culpa ou assumir sua solidão radical sem chantagear ninguém. Não havendo situação em que se pode ganhar tudo.
No Brasil, cultura que conheço mais, o imperativo social de que filhos devem sacrificar tudo em nome dos pais, culmina, sobretudo se estes se tornaram um fardo na velhice, em enormes conflitos e impasses.
Por exemplo, desejo que os velhos pais morram logo, brigas conjugais e entre irmãos, de quem se acusa, velada ou diretamente, um ao outro qual se é “melhor, mau filho ou egoísta”.
Sem citar o afastamento permanente da vida produtiva por parte do cuidador, frequentemente a filha mulher, de quem se espera o cuidado dos velhos (assim como das crianças). Única saída possível quando não se tem dez mil reais por mês para gastar com cuidadores, e lhes repugnam os asilos.
Pequenos avanços no Brasil
No Brasil, mudanças de paradigma timidamente se iniciam nesse sentido, as famílias começando a aceitar as casas de idosos e estas mesmas deixando de serem aqueles horrorosos asilos de antigamente.
Pelo menos é o que caso de onde se instalam (ou são instalados) velhos ricos ou os que acumularam algum patrimônio, imóveis e rendas, ao longo da vida, dos quais agora poderão se valer para pagar seus altos custos, sem precisar onerar nem depender dos filhos.
A boa velhice
Conclui-se disso tudo que uma boa velhice, na modernidade, dependerá, dentre outras coisas, da capacidade de cada pessoa de planejar e poupar dinheiro ao longo da vida.
Práticas infelizmente ainda muito mal vistas pelo brasileiro comum. Alguém que frequentemente gosta de parecer mais rico do que, de fato, é e chama “turco, mão de vaca ou avaro”, o homem previdente e poupador.
Costumes que o farão gastar tudo ou quase tudo o que recebe ao longo do mês, a fim de manter seu status. Sem restar-lhe nada para a velhice.
Finalizando, aprender com outras culturas, tão bem descritas por Simone de Beauvoir em “A velhice”, nas quais o velho retira-se para morrer por compreender já ter tido o suficiente da vida, quase sempre tão generosa, pode sinalizar um razoável amadurecimento no enfrentamento de tão delicado tema.
Dedico este texto às mulheres velhas da minha vida, Cora, Sueli, Rosa e Maria, que me encorajaram, direta ou indiretamente, a pensar nestas coisas.
- No dia 28 de março de 2023, fui convidada a falar deste artigo no Fórum de Biodireito, bioética e gerontologia, organizado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Segue o vídeo completo para quem se interessar:
Creio que foi Norbert Elias que aprofundou a constatação essencial de que “a morte é um problema dos vivos”. E o envelhecer é um lento redemoinho do tempo que nos engole hora após hora e esvazia nossos desejos (como li em outro dos seus textos aqui no blog). Lembrar da morte é reconhecer nossa finitude e cuidar dos idosos é cuidar de si mesmo, com a mesma compaixão que um jovem poderá nos dar lá na frente, num futro envelhecer. Grato por mais este texto Ana. Se não fosse pela psicanálise para darmos conta de ambivalências como essas de um jovem que ficará velho, mesmo que não tenha nenhuma consciência disso no momento presente ou do velho que ainda tem uma chama jovial no coração. Dores do viver. Aprender a viver e a perder a vida. Abraços afetuosos. Luiz Gaulia
Acabei de ler o texto, Ana. Parabéns pela honestidade em expor – de forma até certo ponto dura -, verdades difíceis de se declarar acerca de um tema cercado de preceitos morais e éticos. A respeito do sentimento de culpa (sugerido no texto, suponho, como consequência de uma vitimização do velho frente aos filhos) vs. a assunção da solidão radical sem a vitimização (“chantagem”), acredito que nem sempre uma das duas opções parta exclusivamente do “velho”, mas acredito, assim como você, que a questão é fortemente influenciada pela cultura/religião. De outro lado, concordo plenamente com o fato de que se torna impossível, ao menos no âmbito interno do indivíduo, ser um velho otimista. Talvez a única vantagem da velhice seja o que o Papagaio disse a Alice: “sou mais velho que você, e, por isso, sei mais”, o que, embora não seja uma conclusão inexorável, fato é que, no mais das vezes, a velhice traz uma maior maturidade/sabedoria/experiência, com a contraparte dura de que não poderá ser usada para suprir a mais básica necessidade vital: a satisfação do desejo/vontade. Resta-lhe, nessa fase da vida, um só peso do pêndulo desejo/sofrimento: o sofrimento. “Parece que o fim de toda a atividade vital é um maravilho alívio para a força que a mantém: é o que explica, talvez, essa expressão de doce serenidade espalhada sobre o rosto da maioria dos mortos” (Schopenhauer). No ensaio sobre o arrependimento, Montaigne também admite que a velhice é um fardo: “Na minha opinião é o viver feliz, e não, como dizia Antístenes, o morrer feliz, aquilo que faz a humana felicidade”. E a necessidade de previdência é realmente de suma importância (“Precisa-se então de grande provisão de estudo e de grande precaução para evitar as imperfeições que ela nos inflige, ou ao menos para retardar os seus progressos”) , embora não evite a saída do suicídio, seja ativo, seja passivo, como forma de estancar o sofrimento inevitável ainda que frente a todos os recursos disponíveis: “Ao ver a sabedoria de Sócrates e diversas circunstâncias da sua condenação, eu me atreveria a crer que de algum modo ele mesmo a isso se prestou, de propósito, por prevaricação; pois, na idade de setenta anos, se achava tão perto de sofrer o entorpecimento dos preciosos lances do seu espírito e o ofuscamento da sua claridade costumada.” Impos´sível mesmo, portanto, o otimismo frente a uma verdade inquestionável e dura, a de que: “nenhuma alma, ou raríssima, se vê que ao envelhecer não cheire a azedo e embolorado.” Um abraço