Aproximações entre o pensamento de Nietzsche e a psicanálise.

download (4)O filósofo alemão Nietzsche (1879-1900) morreu exatamente no mesmo ano em que Freud publicava o seu magistral livro “Interpretação dos sonhos”. Freud certamente leu Nietzsche, mas o contrário não aconteceu.

Entretanto, para aqueles que estudam Freud e começam a tomar contato com o pensamento do filósofo, logo percebem os inúmeros pontos de contato entre ambos. E é sobre alguns destes pontos de convergência que eu quero tratar aqui.

 Mas, quem foi Nietzsche?

Do ponto de vista da história da filosofia, Nietzsche foi o primeiro filósofo, em pleno século XIX (século das luzes) que questionou a centralidade da racionalidade e a supremacia do pensamento humano sobre a natureza. Suas duras críticas ao pensamento socrático-platônico, que surge no século V a.C., e que marcam o início da história da filosofia, ecoam de forma contundente em todas as suas obras. Mas, antes do início da filosofia, ou seja, na era pré-socrática, o que havia?

Havia os mitos: interpretações humanas sobre a origem da vida, do mundo e do próprio homem. Estes mitos, ao contrário do que aconteceu com o pensamento socrático-platônico, não tinham a pretensão de explicar e dominar a natureza ou a vida, pois, para os gregos, a vida era indomável. Ao homem que refletia sobre ela, cabia não explicar A Vida, mas vivê-la em sua plenitude, encarando seus conflitos e dilemas. Nos mitos trágicos, o homem grego refletia sua profunda consciência de sua pequenez e incapacidade para controlar as forças da natureza e da vida, que eles chamavam de devir.

O que era o devir?

 Era a percepção que os gregos tinham de que a vida é regida por uma constante transformação, que não pode ser controlada, prevista, nem modificada pelos poderes “supremos” ou racionais do homem.

 Então, o que Nietzsche critica no pensamento socrático-platônico, que irá formatar toda a constituição do homem moderno – de onde herdamos nosso modelo de compreensão do mundo – é a arrogância com que o homem se coloca no centro da natureza. Neste modelo, que predominou nas ciências e nas artes dos séculos posteriores (até chegar a nós) havia e há a crença suprema no poder do pensamento e da racionalidade.

Esta é utilizada, não para interpretar e dar um sentido ao mundo, como faziam os gregos, mas para dizer o que ele É! Deriva daí a ideia de liberdade e autonomia plena do sujeito. Nietzsche, ao contrário – em sua perspectiva trágica do homem – considera que os conceitos de liberdade e de autonomia são uma herança maléfica do racionalismo socrático.  O que ele quer dizer com isso é que o homem não é livre para fazer o que quiser. O homem é parte de um todo, está inserido em um sistema social, político, econômico e depende intimamente das forças tempestivas da natureza para realizar o que quer que seja. Em suma, o homem é mortal. Não controla o tempo. Está inserido nele. O tempo não tem início nem fim. Só o homem é finito, nasce e morre.

  Outra consequência deste pensamento é a seguinte: nós não somos o que somos por causa do nosso desejo e vontade. Pensar assim seria uma grande onipotência! Nossas potencialidades – por exemplo, a minha habilidade para escrever ou dar aulas – não foi uma escolha minha (eu não teria poder para isso), mas algo dado a mim pela minha própria natureza. No meu caso, por exemplo, eu gostaria muito de ter sido bailarina, ou seja, trabalhar com arte, mas não tinha habilidade para isso. Desde pequena fui pouco flexível em termos corporais. Eu não escolhi ser pouco flexível, assim como não escolhi ter habilidade com as palavras, falada ou escrita. Ou seja, grande parte do que nos constitui não é escolhido por nós. Resta-nos aprender a fazer algo com aquilo que somos e aceitar aquilo que não podemos ser. Esta visão, ao contrário do que pode parecer, não é de resignação diante da vida, mas de potência e de plena responsabilidade para com aquilo que eu sou.

Outro exemplo: em nossa interpretação antropocêntrica do mundo (o homem no centro), um homem aguarda meses suas férias que serão em uma belíssima na praia. Chegando lá, chove a semana toda. O que este homem moderno diz? Tinha que ser comigo! É só eu sair de férias que chove. Ora, o fato de chover não tem nada a ver com as suas férias. Trata-se de um fenômeno da natureza, completamente alheio à nossa vontade. O que diz Nietzsche sobre isso? Ele diz que nós, homens modernos, interpretamos as coisas assim porque sentimos medo e pavor de perceber que nós não temos qualquer controle sobre eventos climáticos, sobre a economia, sobre o fato de adoecermos de um vírus ou não e sobre a nossa morte. Todos estes são eventos são absolutamente incontroláveis. OK. Nós fazemos vacinas, manipulamos a genética para vivermos mais, mas, ainda assim a morte, as doenças, a chuva, o frio, o calor, tudo isso vai continuar existindo porque independe da nossa vontade. Em uma linguagem psicanalítica, dizemos que o homem é um ser desamparado, frágil e extremamente limitado.

Mas, diante de tantas determinações, o que faz o homem? Senta e espera? Não.

 Para Nietzsche, a potência do homem está em sua capacidade de tolerar o conflito, inerente à vida, e de se colocar nesta adotando a postura de um soldado forte e corajoso. Para Nietzsche, humildade, resignação e bondade excessiva são características dos fracos.

Então, a radicalidade do pensamento de Nietzsche está em sua capacidade de se distanciar de todas as “Verdades” que a filosofia vinha construindo, de seus dogmas e modelos de pensamento, para questionar o próprio pensamento e a sua centralidade na vida humana.

Nietzsche não se pergunta qual filósofo tinha a verdade. Ele se pergunta: o que é a verdade? Quem determina o que é a verdade? É verdade para quem? E por quem? Exatamente aí reside a beleza e profundidade de suas reflexões filosóficas.

Aprofundando esta questão, Nietzsche chega à doutrina religiosa judaico-cristã e afirma que esta é um platonismo para o povo. O que ele quer dizer com isso? Quer dizer que as noções de céu e inferno, bom e mau, pecado e culpa, certo e errado foram construídas como Verdades com um propósito muito específico: dominar e domesticar os pobres. Deixar o ser humano bem domesticado e incapaz de questionar o que é verdade e por quem ela foi construída.

Segundo ele, estas noções são nocivas à vida porque matam no humano sua vontade de potência, seu poder de transformação no aqui-agora de sua vida. Nesta perspectiva, o foco está na felicidade que será atingida em outra vida, ou em um futuro longínquo. A felicidade no hoje é pecado. Com isso, o homem não pode gozar sua vida no aqui-e-agora. Ou, se goza, o faz com culpa e sentimento de autocomiseração. Não é isso mesmo que dizem as religiões? Que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus? Que se deve amar o inimigo? Ora, não há nada mais antinatural do que isso. Não há nada mais contrário à natureza instintiva e primitiva humana do que amar aquilo que não lhe é prazeroso ou lhe traz algum tipo de ganho!

Com este modelo de Verdade, o homem segue matando e abafando suas forças dionisíacas – forças vitais e pulsionais, que nos lembram de que somos seres da natureza (somos bicho), submetidos às suas poderosas manifestações.

Não é exatamente isso que diz Freud?

Quando ele teoriza que o id é constituído de pulsões, sexuais e agressivas, e que a meta do ego é mediar este constante fluxo de energia instintual com a realidade, não é exatamente às forças dionisíacas de Nietzsche a que ele se refere? Assim também, ele considera que para o id não há moralidade, certo, errado, bom e mau. No id, os desejos são absolutos, inexoráveis. É por isso que diz Lacan, um dos maiores leitores e estudiosos de Freud: ao sujeito em análise, cabe se responsabilizar única e exclusivamente pelos seus próprios desejos. Tornar-se, por si mesmo, um sujeito desejante no mundo, aceitando sua condição de ser desamparado.

Nesta perspectiva, e também na nietzschiana, o sujeito (trágico, por excelência) vive quando se responsabiliza pelos próprios desejos, pelo próprio inconsciente, o que lhe configura uma nova posição no mundo: a posição de um sujeito ético. Na perspectiva racionalista socrático-platônica, que apregoa o ideário de felicidade absoluta, de gozo ilimitado e de liberdade e autonomia plena, há um apagamento do outro e do contexto em que se está inserido. Busca-se, neste modelo, a eternização, o vencer a morte e as doenças, o apagamento e anulação dos conflitos que são inerentes à vida. Pois, se ao sujeito é imputada liberdade absoluta, ele merece tudo: ser feliz, gozar sem responsabilidade, tornar-se imortal.

Hoje, Deus está morto (como havia apregoado Nietzsche), mas há um endeusamento do próprio homem e de uma busca incessante e obsessiva pela felicidade absoluta, pelo gozo pleno e ilimitado. O próprio homem se endeusou.

Nietzsche e a psicanálise vêm lembrar ao sujeito, com toda pertinência e propriedade, que os conflitos são inerentes à nossa existência, que a dor, a frustração, a perda, a morte fazem parte do pacote de sermos humanos e que a potência transformadora do sujeito pode ser buscada em sua luta diária, travada consigo mesmo e com as dificuldades e labutas da vida. O poder de potência do homem está em sua capacidade de transformar a si mesmo, aceitar a imponderabilidade da vida, a falta de controle e de ingerência sobre os outros (cada um é responsável por si mesmo) e, mais importante de tudo, a sua responsabilidade por si mesmo.

Paradoxalmente, ao avistar este conhecimento trágico sobre a vida, o homem conquista um incrível sentimento de liberdade e quietude interior: não a liberdade idealizada e narcísica, de gozo absoluto; mas, a liberdade sábia da maturidade, que olha para o mundo e não se choca mais tanto com as tortuosidades humanas, pois, sabe-se que o homem é feito disso tudo: matéria vil e nobre; tal como a consciência profunda adquirida por Édipo em Colono. Assim foi, é e será. Enquanto habitarmos este planetinha azul.

4 comentários em “Aproximações entre o pensamento de Nietzsche e a psicanálise.”

  1. bom texto, parabéns. eu gostaria de saber quais são os conceitos de Nietzsche que se assemelham com os de Freud e a psicanálise

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.