O estado de expectativa que antecedeu os últimos dias da viagem prenunciava as fortes emoções que viveria no Vale do Pati, rica região geológica da Chapada Diamantina, incrustada no coração do sertão da Bahia.
Renunciar ao conforto habitual, caminhar longas distâncias carregando só o essencial sem encontrar ninguém pelo caminho, exceto outros caminhantes, dormir em casebres de taipa sem luz elétrica em que só chegam mantimentos por mulas e estar distante um dia de caminhada do posto médico mais próximo – tudo isso em meio à paredões rochosos espetaculares de 1.8 bilhões de anos onde antes já foi mar, lançou-me num tempo fora do tempo.
Fazendo esta experiência, compreendi melhor porque o homem em contato direto com a natureza tem uma relação menos controladora com o tempo em comparação com o homem angustiado e apressado das grandes cidades, embora não se trate de idealizar sua vida, a propósito, bastante dura e difícil.
Conhecer de perto a força obstinada do sertanejo a cultivar o cacto Palma em seu quintal, um dos únicos alimentos viáveis na caatinga, fez-me compreender melhor o poderoso instinto de autopreservação que rege o homem.
Neste aspecto, constatei na pele que situações físicas extremas levam a uma recolocação das prioridades tornando um simples pão com ovo manjar dos deuses quando se está faminto.
Outro aspecto é que, num lugar de indescritível beleza, a privação do corpo parece propiciar melhor estado de espírito à contemplação, o que os místicos e ascetas sabem há muito. Daí a combinação entre caminhar e contemplar ser um modo milenar de o homem atingir o sublime. Metáfora que também serve à psicanálise.
Neste sentido, o impacto estético das paisagens sublimes foi tão grande que iniciei, após minha volta, uma radical desintoxicação alimentar.
O maior contato do nativo com seu instinto de autopreservação fez-me pensar no porquê do homem da cidade tender a desenvolver mais psiconeuroses. Pois, neste caso, o instinto de autopreservação, dissociado de suas fontes originais, vê-se obrigado a deslocar-se para outros objetos, produzindo fobias de animais, de pessoas ou de altura, por exemplo, representando, respectivamente, o medo primitivo de ser picado, atacado e de cair de penhascos.
De todo modo, não sei dizer se há psiconeurose entre as quinze famílias que vivem isoladas no Vale do Pati. Observando-os, constatei que alguns homens jovens bebem, o que parece se dever ao conflito entre permanecer no Vale e o desejo de ir para a cidade, algo de que as gerações mais antigas parecem estar imunes pelo vínculo mais sólido com sua terra.
Conversando, descobri que muitos tentaram residir com parentes em São Paulo, mas os salários miseráveis que ganhavam, como faxineiras, pedreiros e motoristas de ônibus, fizeram-nos voltar atrás. Levaram-nos de volta também a solidão, o barulho da grande cidade e a saudade que sentiam da natureza.
Como não há escola, as crianças em idade escolar são mandadas para casas de parentes para poderem estudar e quase nunca retornam.
De minha parte, no último dia no Vale, depois de caminhar o dia todo por 25 Km na chuva, experimentei uma alegria indescritível ao chegar no hotel, tomar um banho quente e dormir em um quarto com teto.
Conclui disso que não suportaria morar num lugar tão selvagem, habituada demais ao conforto que estou. E que o desdém que temos dos recursos da civilização (luz elétrica, internet, fácil acesso à médicos, exames e vacinas, etc.) é pura ingratidão.
Em contrapartida, a extrema dificuldade de acesso e a pouca disponibilidade dos turistas em abdicarem do conforto, fazem do Vale do Pati um lugar intocado da degradação humana, com paisagens naturais de tirar o fôlego. Em três dias de caminhada não encontramos nenhum lixo no caminho!
Lá, a vastidão do lugar culmina em mudanças climáticas violentas e bruscas que vão de ventos cortantes e chuvas torrenciais à céus limpos e espetaculares em poucos minutos.
Nesse aspecto, impressionou-me a profunda interação dos nativos e guias com a meteorologia, capazes de prever com precisão quase absoluta a hora que faria sol ou choveria só de olharem para o céu.
Assim, enquanto nós, os citadinos, desanimávamos com a chuva e nos apavorávamos com as nuvens negras à nossa frente, o guia carinhosamente dizia que deixasse chover para refrescar a montanha, demonstrando quão tolo é lutar contra o que não se controla.
A propósito, pensando depois, concluí que ter caminhado com tempo nublado livrou-me do sol escaldante, o que teria tornado a travessia muito mais difícil e exaustiva.
De outro lado, a aceitação humilde de que quem manda é a natureza, não significava atitude de abandono nem displicência por parte dele, mas sim prudência.
Por isso, carregava consigo bússola, rádio para comunicação, mantimentos extras, remédios e um kit de primeiros socorros haja vista que acidentes ali podem ser fatais, pois a única forma de se chegar ao hospital é ir sacolejando o dia todo no lombo de uma mula, que eles carinhosamente chamam de “uber-mula”.
A propósito, a extrema dependência dos nativos com estes animais de tração é tradição longínqua no homem sertanejo, tal como se vê retratada nas belas narrativas de Guimarães Rosa, por exemplo.
Era muito bonito vê-las passarem por nós, em bandos de seis ou sete, agarrando-se nas pedras escorregadias pelos cascos como se fossem mãos, subindo e descendo pra lá e pra cá. Quase sempre acompanhadas por um cão.
O guia nos contou que elas faziam o trajeto tantas vezes que bastava soltá-las para que fossem sozinhas, exceto uma ou outra fujona que, vez ou outra, se extraviava pelo caminho.
Outra bonita tradição mantida no Pati é o resguardo de luto pelos mortos.
Recentemente uma senhora de 89 anos havia falecido de morte natural sem nunca ter ido à médicos, graças possivelmente a uma feliz combinação de sua boa genética, boa alimentação e o fato dela nunca ter parado de movimentar o corpo, e todo o Vale estava em luto. O luto consiste na proibição de se fazer festas e comemorações.
O fato dela ter aceitado sua hora fatal com humildade e sem revolta parecia orgulhá-los e inspirá-los para melhor suportarem suas próprias dificuldades. O que me fez pensar quão belo é um velho sábio.
Que texto belo e sensível. A sensação de conhecer o Vale do Pati foi muito bem descrita por você.
Parabéns
Lindo texto, Ana. Não vejo a hora de conhecer o Pati.