Em suas elaborações sobre o feminino, Freud lançou a seguinte questão, para ele enigmática e difícil de ser respondida: “O que quer uma mulher?”. Para mim, há ainda outra questão anterior a esta e talvez mais importante: “O que é uma mulher?”.
Freud foi duramente criticado por analistas que se seguiram a ele e também por correntes feministas que consideraram sua teoria falocêntrica. Explico-me. Todo o embasamento teórico que Freud deu no que se refere à construção das identidades masculinas e femininas foi assentada na presença ou ausência do pênis, ou seja, no modo como cada ser humano vivência e se coloca diante da castração.
Explicações dadas por Freud:
Para ele, o menino renuncia ao seu objeto amoroso, no caso a mãe, por medo de perder o seu pênis, parte do corpo fortemente investida narcisicamente pelo pequeno infante. É assim que ele abandona seu objeto de amor primordial e introjeta o superego, herdeiro direto do Complexo de Édipo e fonte das regras e normas sociais.
Para a menina, este processo se dá, segundo Freud, de maneira diferente. No caso dela, é pelo ressentimento de ter sentido que foi a mãe que a privou de ter o órgão tão desejado – o pênis – e por ser ela mesma castrada, que a menina passa a dirigir agora não mais o seu amor, mas o seu ódio à mãe e seu amor pelo pai. Neste caso, Freud também diz que a menina não só desejará ter o pênis do pai para si, mas também desejará ter um filho dele, o que, em termos inconscientes, continua representando o seu desejo de ter um pênis, já que no início a criança faz equivalências entre pênis, fezes e bebês. É por isso que, segundo ele, muitas mulheres adultas abdicam de suas relações com os maridos, quando estes lhes dão um lindo bebê do sexo masculino, detentor do pênis outrora tão desejado. É só neste momento que a menina ingressa no Complexo de Édipo.
O que disse Melanie Klein sobre isso?
Melanie Klein fez importantes críticas a esta teoria falocêntrica freudiana e assegurou que a primeira parte do corpo invejada por meninos e meninas não seria o pênis, mas sim o seio, fonte por excelência de nutrição e amor. Ou seja, seria a figura feminina e não a masculina, detentora do pênis, a ser invejada inicialmente pela criança pequena. Ressalta-se que esta questão, fortemente assentada em um fundo ideológico de “guerra entre os sexos” nunca foi devidamente resolvida pela Psicanálise.
O misterioso do feminino:
Fato também a ser considerado é que, no caso do feminino, muito já foi dito e escrito a respeito, embora se tenha a impressão de que sempre algo de misterioso e não acessível transite pelas questões da feminilidade. Melanie Klein explicou esta dificuldade em apreender o feminino da seguinte forma: para ela, como os órgãos femininos são todos internos e não externos como no caso do menino, que tem fácil acesso visual ao seu pênis, a menina terá mais dificuldade em apreender o que se passa dentro dela. Vale lembrar, por exemplo, o difícil e angustiante momento vivido pela menina em sua primeira menstruação, quando a visualização do sangue menstrual liga-se a profundas angústias e temores inconscientes de ataques e danos a seus órgãos sexuais, vivência que não tem equivalente no menino. É por isso, continua Klein, que os processos introjetivos e consequentes sentimentos culposos são mais presentes em meninas, e processos projetivos em meninos.
Fazendo uma retrospectiva histórica, vale lembrar também como a figura feminina esteve fortemente associada à imagem de bruxas, feiticeiras, demônios e figuras perigosas, imagens estas normalmente elaboradas por homens. Desta forma, não podemos nos esquecer das dificuldades que se impõem quando se trata de um homem (mesmo genial como era Freud) que tenta responder o que é uma mulher.
Além disso, considero que responder o que é uma mulher é algo profundamente complexo que passa por questões culturais, sociais, históricas e percepções individuais, estas também afetadas por conflitivas inconscientes. Ressalto ainda que em nossa cultura ocidental, embora isso esteja sofrendo profundas modificações, ser uma mulher ainda parece estar muito associado à experiência da maternidade, algo que também foi fruto de contextos históricos específicos.
Winnicott, a meu ver, foi o que mais propôs uma solução interessante para esta questão. Para ele, o feminino e o masculino são elementos da personalidade que estão presentes em homens e mulheres. O feminino está ligado ao ser, ou seja, vincula-se ao campo do sentir, e o masculino, ao fazer, ou seja, ao campo da ação. Para ele, todos nós temos porções de elementos masculinos e femininos em nossa personalidade, independente de sermos homens ou mulheres, embora sempre haja o predomínio de um elemento sobre o outro.
Recorrendo aos mitos e tragédias gregas:
Diante das dificuldades que o conhecimento psicanalítico encontra para apreender o que é o feminino, considero que uma importante fonte de compreensão profunda sobre esta temática possa ser encontrada nos mitos e tragédias gregas. Segundo Freud, os mitos equivalem, em termos de dinâmica e funcionamento, aos sonhos, ou seja, são manifestações diretas de desejos inconscientes. Além disso, são um arsenal cultural disponível e extremamente rico do ponto de vista simbólico para se compreender como o homem primitivo, não no sentido linear, mas no sentido do primitivo que nos habita, lida com os dramas humanos – morte e vida, destino ou escolha, paixões e instintos, etc.
Como não é possível considerar o feminino de um ponto de vista geral, por ser temática ampla e complexa demais, elencarei dois aspectos do feminino – esposa / amante e mãe – retratados respectivamente nas tragédias gregas Orestéia, trilogia escrita por Ésquilo, e Medéia, escrita por Eurípedes, para investigar como estes componentes do feminino são compreendidos.
Na trilogia Orestéia, temos a personagem Clitemnestra como figura central. Esposa de Agamêmnon, mata o marido para vingar a morte da filha Ifigênia, que fora morta em sacrifício à deusa Artêmis pelo próprio pai. Já em Medéia, encontramos uma mulher que, pelo terrível ciúme do marido Jasão que a troca por Créusa, mata os próprios filhos para se vingar dele. Deixa sua terra natal Cólquida e se desenraiza por “amor”, amor este que transcende a ela própria.
Intensidades amorosas, pulsões violentas marcam a ambas. Seria este um elemento do feminino, não pelo vértice somente pejorativo da loucura, mas da intensidade necessária à vida, ao crescimento? E qual seria o limite entre intensidades amorosas que fazem vigorar o novo, o criativo e aquela que curto-circuita o desejo, o narcisismo de vida? Medéia amava mais a Jasão que a ela própria. Por isso, aceita deixar suas raízes que a definem e lhe dão lastro, em nome do amor, fazendo uma alusão à expressão atual tão conhecida das “mulheres que amam demais”. Cega por este amor-paixão mata os filhos dele, mas que também são filhos dela. Seria esta uma referência à impossibilidade de se criar algo novo (filhos) em uma relação em que a economia pulsional pende mais ao lado do objeto do que do próprio ego? Penso que a compreensão mais profunda desta tragédia pode nos ajudar a compreender mais a fundo, e sem uma visão pejorativa, os cada vez mais comuns crimes amorosos passionais que envolvem tanto mulheres quanto homens.
No caso de Clitemnestra, vemos uma mulher que faz a escolha pela filha e não só mata o marido, mas toma dele o trono, junto de seu amante. Seria este o outro lado da moeda de Medéia? Mulheres que amam demais, mulheres que amam de menos. Mulheres que, enlouquecidas, são tomadas por paixões violentas e às vezes mortíferas que lhe tomam tudo, sugam seus egos e às colocam num vazio sem fim. Lembro-me das inúmeras mulheres que pude atender em meu consultório e que traziam uma queixa muda, às vezes expressa no corpo e que precisava ser colocada para falar, mas que muitas vezes eram compreendidas pelo seu entorno como “frescura”, “histeria” e “falta do que fazer”.
Qual é esta incômoda falta de sentido da qual se queixam as mulheres e que muitas vezes é tão difícil de ser compreendida de uma forma positivada, sem clichês pejorativos? Penso que os mitos e tragédias podem nos ajudar a compreender esta dimensão profunda do feminino – para além da ausência do falo e da castração, que me parecem explicações pobres – e que comumente é rechaçada, inclusive pelas próprias mulheres, não encontrando lugar para serem gestadas e transformadas em algo pensável e criativo.
Muito bom, tou lendo tudo do blog!