O sentido forte da política nos dias atuais

Viver só tem sentido quando somos capazes de olhar para além de nós mesmos e dos nossos interesses particulares.

Sentir que fazemos parte da grande comunidade humana, por exemplo, nos torna capazes de não exagerarmos os nossos problemas.

Também nos torna corresponsáveis pelas pequenas mudanças que podemos fazer na vida em comum, seja em nossas escolas, bairros, condomínios e cidades.

Definição de política

Para a filósofa Hanna Arendt, este é o verdadeiro sentido da palavra política, a saber, aquilo que se estabelece na relação e no embate construtivo entre as pessoas visando o bem-comum.

A degradação do espírito político em seu sentido forte nos dias atuais decorre do esfacelamento do sentimento de bem-comum.

A ausência de valores fortes na vida coletiva, de um lado, faz inflar a crença de ser o indivíduo o único responsável por seus sucessos e mazelas e de outro, esvazia e empobrece sua vida de sentido, agora centrada somente em si mesmo.

Busca-se segurança, estabilidade, conforto e certezas em um mundo conhecido e habitual ao passo que tudo o que é diferente é tratado como desdém, ódio e desprezo.

Nunca me esqueço do impacto que senti ao ouvir em um mesmo dia, de um homem, que tinha comprado um carro blindado para proteger seu maior patrimônio, a saber, sua família e de outro, fundador de Inhotim, que sacrificou o patrimônio de seus filhos para deixar um legado de cultura e arte à humanidade, com a qual se sentia muito mais comprometido.

Ter a família como único sentido existencial é, para Arendt, uma as danosas consequência do esvaziamento do interesse do homem moderno pelo bem-comum, o que o torna desalentado, entediado e vazio.

O apego aos valores tradicionais serve  para consolá-lo do sentimento de habitar um mundo sem sentido, do qual ele se protege fetichizando a família, ela própria tornada mercadoria e signo de status social.

Daí ser, no ethos deste homem tradicional, família e carro peças inseparáveis de uma mesma imagem de si que ele, sem saber, quer projetar no mundo, a saber, a de ser um homem sério e vencedor.

Conclui-se disso que a degradação do verdadeiro espírito político tornou as pessoas mais individualista e egocêntricas.

Um exemplo disso é uma moradora do condomínio onde moro: em meio a um enorme incêndio que destruiu praticamente toda a mata perto de sua casa, queixou-se com o funcionário que a fumaça a estava incomodando e pedia providências urgentes quanto a isso.

O exemplo parece banal, mas não é. A crença psicótica de que o seu entorno só existe em função dela é tão acachapante que a realidade concreta do incêndio é absolutamente negada em prol de manter o seu delírio funcionando.

Exemplos como este evidenciam aquilo que Freud pontou: que o hiperinvestimento narcísico no Eu  deteriora gravemente o contato com a realidade, deixando-nos incapazes de agir transformativamente sobre ela.

Pseudo engajamento nas redes sociais

Outro exemplo da degradação do verdadeiro espírito político, vemos no pseudo engajamento das pessoas nas redes sociais em contraste com o seu baixo envolvimento real nos problemas práticos de sua vida.

No incêndio acima citado, evidenciou-se algo deste tipo.

Os moradores manifestaram-se abundantemente no Watsapp, mas as expressões revelavam tão somente desespero, revolta e inconformismo, desejo de justiça, apelos à Deus e, no melhor dos casos, tristeza pelo ocorrido.

Ocorre, de outro lado, que nenhum destes afetos puderam se converter em real mobilização.

No máximo, em alguma curiosidade apática pelo que havia acontecido “lá fora, para depois voltarem ao grande sono da indiferença.

Evidencia-se neste caso a necessidade premente de amadurecimento das pessoas no uso destas ferramentas da internet, ainda muito recentes como formas de se fazer política.

Interdependência

O conceito de interdependência, derivado da biologia, tem sido bastante utilizado entre os pensadores da vida social para apontar caminhos futuros à humanidade.

Basicamente trata-se do fato de que a vida é constituída de sistemas organicamente dependentes entre si, onde cada mudança em um sistema altera e impacta o todo.

Um exemplo emblemático de interpendência, ou melhor da negação dela, encontra-se nas zoonoses, a mais famosa delas sendo o o coronavírus.

Nega-se o estado de interdependência com algo ou alguém quando este é apropriado como mero objeto a ser explorado para benefício próprio, destituindo-o de seu valor.

Coisifica-se o outro, o planeta, a natureza, para melhor dominá-lo, tornando-o mera presa a ser consumida e depois descartada.

Já a interdependência pressupõe, para se estabelecer, algum tipo de equilíbrio e de reconhecimento entre os envolvidos, além da disponibilidade para sacrifícios mútuos em prol da continuidade do pacto.

Daí ela não ser possível em situações muito desiguais em termos de poder e de força.

Animais e florestas, crianças, mulheres, pobres, negros, indígenas, homossexuais, travestis e transexuais, além de refugiados carecem de proteção permanente do Estado por isso.

Por serem alvos fáceis do ódio ressentido do homem sério, cada vez mais ameaçado e paranoico frente a um mundo que ele sente mau pelo simples fato de não estar sob o seu controle.

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