As articulações produzidas neste texto são fruto de um curso que acabo de acompanhar com o Prof. Franklin Leopoldo e Silva intitulado Filosofia e Intuição Poética na Modernidade, disponível na internet.
Nele, pensando no ser poético ou na identidade do poeta, o filósofo nos instiga com as seguintes questões: na medida em que um dos traços fundantes da modernidade é a degradação e a perda dos valores estéticos e éticos, como pode o poeta viver num mundo sem poesia? Ou, colocado de outro modo, como poderia o poeta continuar a fazer poesia em um mundo sem ideal? Haveria ainda alguma poesia possível para este mundo?
Nestas indagações de uma aparência singela, algo de brutal e terrível está posto que é a própria crise identitária vivida pelo ser poético em um mundo no qual os valores que definiriam seu ser não existem mais.
O dramático neste contexto é que o próprio ser do poeta é colocado em xeque, passando ele a estar como que exilado de si mesmo, numa espécie de terra do nunca da não existência. Neste curso, o professor Franklin toma o poeta Baudelaire como um modelo da manifestação pura deste não lugar, sendo por isso talvez ele ter ficado conhecido como “o poeta maldito”. Mas, não pensemos que Baudelaire, moderno por excelência, respondeu à sua maldição refugiando-se em nostalgias e romantizações dos ideais passados.
Segundo nos informa o professor Franklin, Baudelaire, vivendo à moda de um profundo espírito nietzschiano, nunca recusou o tempo em que viveu, ainda que tenha personificado em sua própria vida a precariedade de seu tempo. Ao contrário. Conta-nos o professor que ele insistia na possibilidade de integrar em sua existência tudo aquilo que também lhe faltava, algo que Franklin associa a uma posição fortemente existencial e heroica diante da vida.
Além disso, Baudelaire repudiava em seu tempo, seja dentro ou fora da arte, condutas classicistas em que o antigo era idealizado e o moderno denegrido. Em seu texto “O pintor da vida moderna”, ele ironiza o frequentador de museu que rejeita as obras de seu tempo consideradas por ele de menor valor e enaltece um Rafael ou um Michelangelo, como se estas obras tivessem valor per si. Para o poeta maldito, este falso erudito equivoca-se em sua avaliação ao se esquecer de que cada época produz seus próprios artistas, frutos do seu tempo, e que Rafael também foi moderno para os seus contemporâneos. Além disso, para ele, estas pessoas que vivem ansiando viverem um tempo que não o seu fazem um desserviço à humanidade, na medida em que deixam de reconhecer no presente os valores que estão para ser descobertos ou inventados por eles mesmos.
A perspectiva do poeta, nesse sentido, parece ser a de que ao invés de nos evadirmos para um passado idealizado e sonhado como um tempo liso, que correria sem atritos e sem dissonâncias, o valor da atitude moderna seria a de encarnarmos com uma positividade aberta o tempo presente que é o único que efetivamente podemos viver. Seria a partir desta perspectiva que o poeta teria algo a nos dizer.
Mas para indagarmos o que o poeta moderno tem a dizer, antes devemos indagar que mundo é esse que não o escuta mais e no qual ele não tem mais lugar.
Trata-se do mundo utópico desenhado pelo Iluminismo em que o homem dominaria o mundo pelas suas ideias e competências racionais.
Este admirável mundo novo incorporado pela revolução burguesa exaltou o sujeito em sua dimensão positiva e livre e instigou nele um desejo permanente de progresso e desenvolvimento ilimitado; produziu também, como o avesso desta experiência, um mundo massificado e prosaico constituído por uma multidão indiferenciada que deseja toda ela o mesmo desejo, alienada por sua vez no vozerio unívoco do pretenso discurso livre. Será sob o pano de fundo deste mal-estar perene – aquele da multidão alienada de si mesma, e do poeta que ao mesmo tempo observa e participa deste mundo impossível – que o poeta encontrará formas de sobreviver.
Ele será, segundo o professor Franklin, uma espécie de testemunha viva das ambiguidades, do vazio existencial e do tédio que marcam o nosso tempo. Sua existência, ainda que impermanente, só é possível não porque aqueles que estão na multidão desejam ser acordados de seu sonho pelo poeta, mas porque neste, e só dentro deste, algo segue desencaixado, fora de lugar, clamando por existir e ser pensado. A este algo que pede por um reconhecimento existencial Kierkegard chamou de “a singularidade de um indivíduo”.
E aqui tocamos num pontos mais nevrálgicos e irresolvíveis da questão: na medida em que o poeta, para existir, necessita do reconhecimento de seu semelhante, de seu leitor, e este lhe recusa, lhe rejeita, escarnece dele, por onde ele buscará este olhar que lhe é negado?
Para o professor Franklin, aqui tanto o poeta quanto sua arte só poderão existir resistindo a um mundo que lhes é absolutamente hostil. Poeta e sua arte, uma vez colocados fora das categorias do tempo moderno (tempo da produtividade) e da racionalidade, irão buscar como fonte de criação poética não mais os belos feitos do herói, em um mundo onde os valores ainda tinham algum significado, mas na própria banalidade e na indigência do cotidiano, buscando o sentido e o valor pelo seu aspecto negativo, ou seja, ali onde eles não existem mais.
Por isso o interesse de Baudelaire por indigentes, prostitutas, boêmios, etc. Estes heróis de Baudelaire não eram heróis porque inventaram novos e belos valores, mas porque resistiram, ainda que inutilmente, aos valores vigentes. Através deles, o poeta canta, portanto, o colapso completo dos valores que marcará a passagem da modernidade até os nossos dias.
Identificado a estes personagens marginais que vivem numa espécie de hiato entre a existência e a não existência completa, o poeta encontraria aí alguma ancoragem para si. Assim como eles, o poeta encarna esta marginalidade quando se recusa a se identificar com os discursos normativos vigentes, recusando assumir qualquer posição que seja, o que já significaria tomar partido. Nesse sentido, Baudelaire foi acusado por nunca se manifestar publicamente sobre qualquer assunto, embora seu silenciamento se desse não por alienação, mas por fidelidade à complexidade do real, conforme explicou o professor.
Ora, se o sentido e a beleza, dos quais o poeta depende visceralmente para viver, não podem mais ser encontrados no olhar de seu semelhante e vida comum, de onde eles vêm agora?
Vem da transfiguração do real. Ou seja, do dom que tem o poeta de, ao observar os fatos, dar-lhe sempre outro sentido, sonhado e imaginado e, portanto, mais rico e polissêmico que o real em si.
É a partir daí que o poeta poderá reencontrar o sentido e a beleza que a tecnicização da vida tomaram dele. Observando aquilo que é, o poeta sonha, escuta outro texto, enxerga outra cena, que os olhos e ouvidos do leitor ou do espectador não poderiam acessar. Na feiura e na maldade do mundo, os olhos do poeta buscarão os últimos vestígios soterrados da beleza e da bondade. É deste anseio estético de encontrar a beleza soterrada no mal que se trata o título de um de seus livros “As flores do mal”, conforme explica o professor Franklin.
Para que possa transfigurar o real, o poeta desrespeita o uso utilitário que se dá à palavra. Torce os sentidos, destrói a naturalidade pretensa que existiria entre palavras e coisas, perverte-as, agita-as em seu tubo de ensaio mágico, faz deslizar os sentidos, metaforiza. Com este seu truque, produz sentidos ambíguos, deslocados da significação convencional e escandaliza. O leitor, confrontado com este poeta em crise, será convidado a se desalojar de seu lugar confortável, mantido ao custo da hipocrisia. Assim, diz Baudelaire ao leitor:
“Tu conheces, leitor, o monstro delicado.
– Leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão.”
O leitor é hipócrita porque acredita que está fora da crise existencial dramaticamente encarnada pelo poeta e que ela é apenas aparente, e não lhe afeta de modo algum. Mas, Baudelaire, o lembra de que ele conhece o monstro delicado do qual tenta em vão se evadir. Diz-lhe ainda que, neste saber, ambos estão irmanados e ligados pelo monstro, sendo ambos afetados por ele. Com isso, esvazia o lugar de saber do poeta com o qual o leitor não mais pode mimeticamente aprender a ser. Constrói, de outro lado, um saber poético pautado na ambiguidade, tal como um espelho ambíguo que refletirá do leitor sempre mais e sempre menos do que aquilo de si que ele projeta.
Esta posição singular do poeta é arriscada, como lembra o professor Franklin e ele deve estar preparado para assumir os riscos dos segredos que serão revelados em sua transfiguração do real, assim como os efeitos inesperados que esta revelação trará, para os outros e para ele. Além disso, como outra característica heroica do ser poético, ele deverá pagar o preço de sua posição ambivalente com relação aos limites que, ao mesmo tempo, estão aí para ser superados, mas que, uma vez superados, lançam-no em um mundo sem chão e sem parâmetros definidos a priori. Ainda, o poeta deverá renunciar ao se deixar ir, que é como faz a multidão, pagando esta renúncia com o preço da exclusão que ele vive externa e internamente.
Ou seja, na constituição da singularidade heroica do poeta ele será acompanhado por emoções oscilantes difíceis de serem suportadas; vazio e angústia, medo e incerteza, ira e ironia, solidão e desterro sendo algumas das que podemos nomear. Assim, quando Baudelaire escreve “Sou a ferida e a faca” podemos ouvi-lo colocar em palavras o impasse que é sermos humanos, impasse que o poeta encarna visceralmente em seu próprio ser.
Articulações possíveis entre o ser poético e o ser analítico
A riqueza destas articulações para o psicanalista está no fato de que o ser poético, tal como ricamente descrito pelo professor Franklin, guarda muitas semelhanças com o ser analítico.
Pretendo trabalhar o que penso terem um ponto de contato com o ser analítico em outro texto, mas só para citar algumas teríamos:
1) O lugar ocupado pelo ser analítico representado pelo analista na sala de análise é ambíguo como o ser poético visando fazer cair as mistificações sintomáticas do Eu, para que possa emergir a verdade do sujeito.
2) A necessidade de que o outro ocupe o seu lugar, para se constituir também é compartilhada por ambos. Assim como não existe poeta sem leitor, não existe analista sem analisando. Na ausência deste lugar complementar, poeta e analista vivem uma crise identitária dramática que lhes afetam desde dentro, ou seja, no seu próprio ser.
3) Assim como o poeta, o ser analítico questiona tomando a si mesmo como mote a visão racionalista do sujeito autônomo e auto engendrado.
4) Poeta e analista são suportes testemunhais da ambiguidade irresolvível que marca a existência humana.
5) Ambos operam fora das categorias de tempo e de espaço propostas pela racionalidade moderna, sendo isso o que Freud pretendeu articular com sua noção de inconsciente.
6) Ambos encarnam em si, ainda que ao custo de uma perda de onipotência do Eu, uma dura fidelidade à complexidade do real. Daí que nenhuma articulação vinda do poeta ou do analista pode comportar qualquer tipo de certeza consoladora.
7) Assim como poeta, o fazer do analista consiste em transfigurar o real, sonhá-lo em nome de uma vida com sentido. Um e outro não o fazem por uma escolha. Trata-se de uma necessidade vital. Poeta e analista não veriam sentido em continuarem vivos em uma realidade na qual não pudessem transfigurar.
8) Poeta e analista pagam o preço desta transfiguração com uma dura abstinência no que se refere à satisfação de necessidades imaginárias, ambos funcionando como uma espécie de guardião do simbólico.
Indicações de leituras feitas durante o curso:
Baudelaire, C. (1863). O pintor da vida moderna.
Benjamin, W. (1989). Baudelaire: um lírico no auge no capitalismo.
Berman, M. (1982). Tudo o que é sólido se desmancha no ar.
Novaes, A. (2005). Poetas que pensaram o mundo.
Kant, I. (1973). Resposta à pergunta: o que é o iluminismo?
Sartre, J. P. (1947). Baudelaire.
*Não tenho palavras para agradecer ao Prof. Franklin Leopoldo e Silva pela generosidade com que ensina filosofia e à iniciativa da TV Unifesp, que disponibilizou o conteúdo online e me possibilitou acesso a este rico material.
Que texto incrível. Encontrei seu blog e fiquei maravilhada, não sou psicanalista, mas seu conhecimento me deixa extasiada.
Foi muito bom refletir sobre a existência do poeta, a existência da arte no cotidiano de uma sociedade como a nossa.