Os casos clínicos de Freud: uma aventura do pensamento

FreudIntrodução

*Trabalho apresentado na aula inaugural do módulo Os casos clínicos de Freud, proferida em 06 de agosto de 2022 no Curso de Especialização Teorias e Técncias Psicanalíticas do Instituto de Estudos Psicana´líticos (IEP-RP)

Indagar-se sobre a importância de se estudar os casos clínicos de Freud é resgatar a própria origem e natureza da psicanálise, cujo cerne reside na absoluta indissociabilidade entre a teoria e a prática, uma dependendo da outra para avançar. 

É o que se vê em Freud, cientista nato por excelência. 

Nele, a clínica é o laboratório onde o clínico-pesquisador descobre, testa e reformula suas teorias de base, elas próprias significando o exercício ininterrupto do pensamento de um gênio que busca apreender e sistematizar algo de verdadeiro sobre a condição humana.  

É este movimento de Freud, que o faz avançar na teoria a partir do que observa e aprende com cada um de seus pacientes, que eu pretendo mostrar hoje a vocês, através de alguns fragmentos de seus casos clínicos.

Sem compreender este espírito científico em Freud, herdeiro de Kant, não se compreende nada do método psicanalítico, para quem a apreensão profunda dos conceitos é tão fundamental, ou até mais, que a pura sensibilidade e a intuição. Pois, como disse Kant:

“O pensamento sem a intuição é vazio; mas a intuição sem o conceito é cega.”

A apreensão vaga ou insuficiente dos fundamentos conceituais e metodológicos da psicanálise por parte do terapeuta acaba por deixá-lo aturdido ante o material do paciente, sendo o antídoto contra isso o estudo sério e profundo das teorias e dos casos-modelo, além da análise e supervisão. 

Trata-se de um caminho a meu ver solitário de embate com a obra e seus conceitos, até torná-los seus. Momento em que o terapeuta deixará de utilizar os conceitos de modo forçado e artificial e passará a incorporá-los suave e integradamente ao seu modo próprio de entender a si mesmo e, consequentemente, o seu paciente. 

É inspirador nesse aspecto ver Freud debater-se entre dúvidas e incertezas sem abandonar o problema até ter ido fundo o suficiente em sua compreensão por sua própria cabeça. 

Às vezes, observo que se espera muito do supervisor ou do docente neste sentido, esquecendo-se muito facilmente que não se apreende a psicanálise lendo manuais ou mimetizando modelos, mas passando por transformações internas profundas, o que não se faz sem grandes doses de humildade, solidão e dor.  

Dito isso, vejamos como este homem obstinado, genial e, acima de tudo, de uma qualidade humana ímpar, foi caminhando, meio aos tropeções e tateando no escuro, para ser capaz, ora ou outra, de iluminar verdades penetrantes sobre a psique humana. 

Na ocasião de hoje, mostrar-lhes-ei Freud enxergando a presença sinistra do instinto de morte, ainda sem conceituá-lo, e adaptando o método para acolhê-lo.

Em seguida, mostrar-lhe-ei Freud fazendo a passagem do nível da apreensão ao nível conceitual dos fenômenos da resistência e da transferência como resistência à continuação do trabalho do pensar. Estes dois últimos levando Freud a solidificar de uma vez por todas o seu método interpretativo. 

Freud enxerga a fera do homem e ajusta seu método

Estamos em 1889. Freud recebe para tratamento uma mulher de 40 anos chamada Fanny Moser (Emmy von N) e a diagnostica como um quadro histérico bastante antigo e cristalizado. Ela tem tiques, é gaga, retorce o rosto e as mãos, repuxa os olhos e a cada dois ou três minutos grita, com o rosto crispado em desespero alucinado: Fique quieto! Não me toque! Não diga nada!

Freud está inseguro com o uso do método sugestivo-hipnótico, mas para sua sorte Fanny se deixa hipnotizar com facilidade. Indagada pelo médico, fala sem nenhuma resistência de seus traumas. 

Freud vai ficando cada  vez mais perplexo com o número de fantasias sádicas e autopunitivas, cenas de loucura e hospícios, mortes, autoflagelos e infortúnios que a paciente traz livremente e o uso de sugestões do tipo, você não vai mais pensar nisso, aumenta na mesma medida de sua perplexidade. 

Mas então o que ele faz? Usando de sua capacidade de observação penetrante, em dado momento vincula seu sofrimento à algo excêntrico que nota em seu caráter, a saber, que é terrivelmente severa consigo mesma:

Em mais de uma ocasião tive oportunidade de notar, nestes últimos dias, o quanto ela é severa consigo mesma e como tende a se culpar com severidade pelos ínfimos sinais de negligência (p.97)

Estamos assistindo ao vivo Freud apreender com sua intuição e sensibilidade o que será conceitualizado por ele trinta anos depois, a saber, o instinto de morte operando pela ação do superego cruel.

Esta apreensão fulgurante não tardará a levá-lo, também de forma intuitiva, a perceber que acalmar e sugestionar a paciente de nada adianta, sendo necessária uma adaptação fina do método:

“Quando, há três dias, ela se queixara pela primeira vez do seu medo de hospícios, eu a havia interrompido após sua primeira história, a de que os pacientes eram amarrados a cadeiras. Vi então que nada tinha ganho com essa interrupção e que não posso me furtar a escutar suas histórias com todos os detalhes até a última palavra. Depois de reparar estas falhas, livrei-a também dessa nova safra de terrores.” (p.94)

Ou seja, frente à emergência do instinto de morte via culpabilidade superegóica, é necessário o analista se munir de toda paciência e tolerância que puder para acolher a miséria humana de se precisar de muita ajuda antes, até ser capaz de amar. 

 Nota-se, portanto, neste exemplo como Freud usa de sua intuição sobre a presença sinistra do instinto de morte para promover um ajuste na postura do analista. 

Enxergando as resistências

Com a mesma Fanny Moser, Freud está tentando descobrir a causa de sua gagueira, a saber, quando ela se manifestou pela primeira vez. A paciente diz nada saber enquanto Freud a pressiona cada vez mais a falar, até que finalmente obtém como resposta:

“- A senhora não sabe? – Não. – Por que não? – Porque não posso saber!!” (pronunciou estas últimas palavras com violência e raiva) (p. 94)

Ela não pode saber significa que há coisas que estão proibidas ou vedadas ao pensamento e o motivo para isso é que enxergá-las/pensá-las causa dor. 

Freud está cada vez mais perto de compreender o quanto é a evitação da dor e do desprazer o grande paralisador do pensamento humano, sendo que o conceito psicológico que ele inventa para dar conta disso é o par indissociável recalque/clivagem-resistência. 

Sua observação de que os pacientes deliberadamente escolhem não pensar no que os incomoda, leva-o à abandonar de vez o método hipnótico. Pois, as representações retiradas da consciência não dependem mais do paciente estar hipnotizado para serem conhecidas, mas da escuta sagaz do médico em interpretá-las no material que o paciente traz acordado.

É o que irá teorizar em termos de mudança metodológica a partir da experiência com a paciente Ilona Weiss (Elisabeth von R), que o procura aos 24 anos em 1892 para tratar-se de dores incapacitantes nas pernas. 

Esta jovem muito resistente a se deixar hipnotizar foi um verdadeiro teste de fogo para Freud, sendo, segundo ele, uma das tarefas mais árduas que já empreendeu. 

Exortada a trazer as representações recalcadas quando Freud lhe pressionava a testa, dizia, em tom de triunfo, nada lhe ocorrer. 

Intuindo algo sobre a resistência, Freud percebe curiosamente que o método só falhava quando ela estava alegre e sem dor, mas nunca quando estava mal. Convencido disso, diz a ela certo dia:

“Não é verdade que nada lhe ocorre. Você é quem reprime e não se encoraja a me dizer o que lhe passa pela cabeça quando te indago sobre isso. Consigo pensar em dois motivos para você fazê-lo. Ou você não presta muito a atenção no que digo e, neste caso, terei prazer em repetir-lhe a pressão. Ou talvez você ache que sua ideia não é a ideia certa, mas isso não é problema seu decidir. Sua obrigação é ser inteiramente objetiva e dizer o que lhe vem à cabeça, quer seja apropriado ou não. Afinal, enquanto ocultar de mim o que pensa, jamais se livrará de suas dores.” (p.178)

Aqui vemos Freud já plenamente convencido de haver uma resistência perene do ego, que busca paralisar o trabalho analítico, resistência que opera, neste caso específico, com a paciente selecionando pela faculdade crítica o que vai dizer ao médico. 

O que nos faz pensar nas enormes resistências internas que o próprio Freud teve que vencer para ser capaz de não ceder à visão ingênua do ego como colaborador do trabalho, quando, na verdade, é muito pelo contrário. 

Visão dolorosa que ficou consolidada na célebre frase: Não confio mais nas minhas histéricas.  

A conceituação da transferência: um percurso espinhoso

   Para nós que legamos os conceitos de Freud prontos, é fácil localizar a presença da transferência dirigida ao analista em quase todos os seus casos clínicos. 

Agora imaginem-no operacionalizar isso conceitualmente pela primeira vez, o que lhe foi possível fazer com Ida Bauer (Dora) em 1900. 

Ida é uma jovem de 18 anos, inteligente e bonita, levada à Freud pelo pai, homem que havia se tratado de sífilis com ele no passado. Trata-se de uma pequena histeria com sintomas de dispnéia, aversão alimentar, afonia e tosse nervosa. 

O tratamento, que dura três meses, é precipitado por uma carta em que Ida encena uma intenção de suicídio. O pai se desespera. Ocorre que Ida está envolvida em um jogo amoroso envolvendo o pai e um casal de amigos da família, a senhora e o senhor K. 

Freud não tarda a descobrir que Ida está tomada de impulsos vingativos contra o senhor K por intenções amorosas que não se concretizaram, sendo este o motor inconsciente de sua doença. 

Por outro lado, porque Ida se abria com facilidade e não demonstrava nenhuma resistência ao trabalho, Freud relaxa e deixa de prestar atenção à transferência, que acaba por culminar no seu abandono do tratamento: 

“Não consegui dominar a tempo a transferência; graças à solicitude com que Dora punha a minha disposição parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar atento aos primeiros sinais da transferência (…) Assim, fui surpreendido por ela e, por causa desse X, que me fazia lembrar o senhor K, ela se vingou de mim como queria se vingar dele (…) Desconfio que esse X se relacionasse com dinheiro ou com ciúmes de uma outra paciente (…)” (p.104)

Freud novamente não é ingênuo e sabe que as forças instintuais com as quais está lutando são poderosas demais e que não se sai ileso dela. Por isso não se culpa nem se autoflagela por ter “falhado”, mas também não fica com raiva da paciente. 

Ao contrário. Usa a experiência dolorosa do abandono para expandir sua compreensão teórica acerca da transferência como resistência à rememoração do recalcado:

“Depois do primeiro sonho no qual ela se alertava a abandonar o tratamento, tal como antes deixara o senhor K, eu mesmo devia ter me precavido e lhe dito: “Agora você fez uma transferência do senhor K para mim. Acaso algo a leva a suspeitar de más intenções de minha parte para com a senhora?” (…) Então a atenção dela ter-se-ia voltado para algum detalhe do nosso relacionamento por trás do qual se esconderia algo análogo, mas incomparavelmente mais importante a respeito do senhor K.” (p.113)

A formulação conceitual de Freud acerca da transferência ser uma falsa ligação com o analista visando manter encoberto afetos, fantasias e pulsões que visam na verdade outra pessoa, merece destaque por ser frequentemente mal compreendida na obra. 

Nesse aspecto, não basta que o analista interprete a transferência, sendo esta só uma parte do trabalho. 

A segunda e mais importante parte do trabalho é o analista buscar compreender quem é a pessoa que ele representa e porque o paciente não pode se conscientizar do que está experimentando em relação à ela. 

Aplicando esta fórmula à Ida, ver-se-á que ela transferiu a expectativa de ser amada para Freud porque não podia admitir, em sã consciência, o quão perdidamente apaixonada estava pelo senhor K, dada sua natureza bastante orgulhosa. Este era o afeto do qual ela não tinha qualquer consciência, ao contrário do impulso vingativo, bem mais consciente para ela. 

Depois que Freud compreendeu isso com clareza, tornou-se cada vez mais seguro do manejo da transferência, conforme se verá na “jovem homossexual”, vinte anos depois. 

A jovem homossexual

Trata-se de uma moça de 18 anos, filha de uma família burguesa de origem judia chamada Margarethe Csonka-Trautenegg, cujos pais a levam à Freud por causa de seu homossexualismo.

Assim como Ida, Margarethe está possuída de um poderoso sentimento de vingança contra o pai, por ter engravidado a mãe, já mais velha. 

Na transferência, Freud sente toda sua hostilidade, desconfiança e desejo de troça, esboçadas de forma sutil e disfarçadas por um aparente espírito colaborador. 

Trata-se de uma outra modalidade de resistência, diferente da de Ilona, que selecionava o que dizer. Agora a paciente desafeta o que escuta de Freud, o que lhe permite não mudar ao mesmo tempo que manter sua análise num nível puramente racionalizado, e o analista impotente. 

Freud está muito atento a isso, conforme se vê no modo ele como interpreta, de forma sagaz, o desejo da paciente de enganá-lo levando-lhe sonhos hipócritas em que ela aparece casada e com filhos: 

“Advertido por uma ou outra ligeira impressão, disse-lhe que não acreditava naqueles sonhos, que os encarava como falsos ou hipócritas, e que ela pretendia enganar-me com eles, tal como habitualmente enganava o pai.” (p.176)

Por fim, ciente de que ela não abandonaria tal intenção de condenar sua melhora em prol de vingar-se, decide interromper seu tratamento e encaminhá-la à uma analista mulher. 

Manejo em que se observa sua visão bastante madura da problemática da homossexualidade feminina referendada, nas fases finais da obra freudiana, à uma forte e indissolúvel fixação erótica da menina na mãe.  

Considerações finais

Espero ter sido capaz de demonstrar a vocês, por meio destes pequenos fragmentos clínicos extraídos dos casos de Freud, o modo como ele trabalhou e pensou nestes quase quarenta anos em que a psicanálise foi permanentemente gestada: aliando uma profunda capacidade de observação à um modo de pensar bastante original. 

Em síntese, se compararmos estes quatro casos emblemáticos conduzidos por Freud num prazo de vinte anos – Fanny, Ilona, Ida e Margareth – vemo-lo progressivamente amadurecer seu pensamento metodológico e conceitual à partir de seus próprios erros de condução e de entendimento, que o faziam, a cada vez, ajustar a teoria para explicar o que via, e não o contrário. 

É o que torna a psicanálise uma ciência radicalmente dependente da prática para avançar, não podendo nunca ser meramente filosófica ou especulativa. 

Neste aspecto, Freud nunca se cansou de dizer que sacrificaria sem pestanejar a teoria se ela não se ajustasse bem aos fatos, sempre mais complexos do que gostaríamos que fossem.

Felizmente isso não ocorreu. 

Os sólidos conceitos que ele nos legou se provaram verdadeiros e continuam tão férteis, instigantes e vivos quanto da data de suas criações, dando-nos sempre muito o que pensar.

E nós só podemos agradecê-lo por isso. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

kant, Immanuel. Lógica. Trad.: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

Freud, Sigmund. (1996). Srta. Anna O (Breuer). In.: Estudos sobre a histeria. Vol. II, pp. 57-81. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. (Trabalho original publicado em 1893-95).

Freud, Sigmund. (1996). Sra. Emmy von N (Freud). In.: Estudos sobre a histeria. Vol. II, pp. 82-133. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. (Trabalho original publicado em 1893-95).

Freud, Sigmund. (1996). Srta Elisabeth von R (Freud). In.: Estudos sobre a histeria. Vol. II, pp. 161-206). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. (Trabalho original publicado em 1893-95).

Freud, Sigmund. (1996). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In.: Além do princípio do prazer. Vol. XVIII, pp. 157-186. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. (Trabalho original publicado em 19120).

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