A avó era surda como uma múmia. Incomunicável com o mundo, habitava um universo próprio, todo seu. Tinha medo de sair dele. Pavor mesmo. Sons humanos soavam em seus ouvidos como gritos horripilantes. Virgínia, a neta, tinha paixão pela esquisitice da avó. Suas peles flácidas, seus olhos caídos, sua tez branquíssima fazia Virginia se lembrar de um fantasma ou de uma bruxa. O silêncio da morte se aproximando era completamente misterioso para ela.
Havia dias em que a mãe de Virgínia, por um motivo qualquer, pedia para que a menina tomasse conta da velha. Eram momentos de puro terror e fascinação. A avó, muito velha e branca, era colocada sentada imóvel em uma cadeira de balanço antiga bem em frente à janela que dava para um pequeno jardim lateral da casa. A miúda se sentava, dura, ao lado da avó, em uma pequena cadeira. Ambas permaneciam imóveis a tarde toda. Virginia punha-se a observar atentamente cada pequeno movimento da velha, enquanto pensava com os seus botões:
– Como será que ficará seu corpo depois de morto? Será que ficará duro como o corpo de um gato que morreu outro dia mesmo em nossa rua? Quanto tempo será que demora para que os vermes comecem a nos comer?
As tentativas de estabelecer uma conversa minguada com a avó eram infrutíferas e logo desanimavam a menina. A avó não ouvia absolutamente nada e a necessidade de ter que repetir a mesma pergunta infindáveis vezes até que ela pudesse compreender pelo menos uma parte do que lhe era dito, desanimava Virgínia antes mesmo de ela tomar coragem e abrir a boca para dizer qualquer coisa que fosse.
Entretanto havia algo na avó que hipnotizava Virgínia. No fundo, ambas eram semelhantes em suas almas. Ambas eram alisadoras de silêncios. Tanto uma quanto a outra poderiam permanecer horas ou dias completamente em silêncio simplesmente a olhar fixamente para uma pequena formiga que se locomovia paciente em seu caminho de açúcar.
Sim, elas eram contempladoras do nada.
Este era o pacto secreto entre elas. Virginia, vista pelos outros membros da família como uma criança bem esquisita, era a única capaz de compreender a alma silenciosa e surda da velha. Sim, Virgínia sabia que neste silêncio mudo havia um pedido. Sim, Virgínia sabia que a avó queria morrer, que já estava cansada da vida, que já estava cansada de sons humanos, que não via mais nenhuma graça na luta infindável que é estar vivo. Virgínia – a esquisita – compreendia a dor funda carregada pela alma de sua velha avó. No fundo, Virgínia sentia o mesmo. Mesmo sendo criança, sua alma, que também era velha, às vezes ficava profundamente cansada da vida. Seu olhar astuto não lhe permitia acreditar em falsas esperanças ou em concessões. Sim, Virgínia sabia que viver era um peso e que – coitada da avó – já devia ter experimentado tanto deste peso da vida que devia estar cansada que só.
A menina chegava a pensar em algo bastante revolucionário. Pensava que se pudesse criar o seu próprio país, nele as pessoas já velhas teriam a liberdade de poder escolher quando e como gostariam de morrer. Se estivessem já muito cansadas da vida, como era o caso de sua pobre avó, poderiam morrer caso quisessem. Neste país, a morte não seria tratada como um tabu, mas como um processo natural da vida.
– Afinal, se formigas morrem, leões e macacos morrem, estrelas morrem, porque nós haveríamos de ser eternos?
Certo dia Virgínia teve uma ideia que a ela parecia genial: convocaria uma reunião com os membros familiares, incluindo tios e primos, para que pudessem encontrar uma maneira de fazer com que a avó voltasse a ouvir e a se interessar pelo mundo humano.
– Sim. Desta forma a velha poderia voltar a ouvir os lindos sons que rondam a vida: o barulho da água da chuva, do beija-flor, das abelhas zunindo no jardim, do cão latindo, uma bela música de igreja, que sua pobre avó tanto gostava. Quem sabe assim ela não voltaria a ter vontade de continuar vivendo, nem que fosse só mais um pouquinho?
É que Virgínia, ao mesmo tempo em que sabia com consciência aguda que viver é um peso, também sabia e sentia que havia algumas poucas coisas na vida que eram belas demais para deixarem de ser ouvidas pelos ouvidos humanos. Estas coisas tão lindas que enchem o coração humano de uma alegria sublime quando escutamos uma linda música ou o correr dos pingos da chuva em um dia frio, Virgínia queria poder compartilhar com a avó em seus derradeiros momentos de vida. Ela não queria deixar de ajudar sua velha avó a experimentar a beleza de ouvir determinados sons perfeitos que emanam da natureza. Virgínia também sabia, lá no fundo de sua pequena alma, que sua velha avó havia desistido de ouvir os sons humanos porque estes eram violentos demais, feios demais, sinistros demais para os delicados ouvidos daquela pobre criatura. Então, num ato que parecia de rebeldia, mas que era de pura liberdade, ela havia deliberadamente desistido de ouvir os sons humanos, passando a habitar o mundo dos seus próprios sons.
Acontece que Virgínia, com sua alma sensível demais e doída demais, não suportava ver acidentes de percurso deste tipo. Ela precisava fazer alguma coisa. Por isso teve a ideia de marcar a reunião.
No dia da reunião, a pequena tomou à dianteira:
– Não podemos mais permitir que vovó se recuse a ouvir o som da vida!
Ao dizer isso, Virgínia sentiu de um modo caótico que havia proferido palavras proibidas e heréticas. Sentiu confusamente que aquilo havia sido demais – lembrar a todos que vida tem som. Ela pagaria um alto preço por isso que havia acabado de fazer. Imediatamente Virgínia, em um estado que parecia de sonho-pesadelo, sentiu bocarras enormes vindo em sua direção. O primeiro a vociferar foi o tio:
– Mas, ela não quer mais ouvir. Disse gritando. É uma teimosa. Não adianta. Para mim isso é perda de tempo, bobagem. Ela é teimosa como uma porta.
A pequena Virgínia, tão frágil e valente, sentiu uma profunda dor no peito. Havia sido ferida em cheio. Ferida em sua minguada esperança na vida. Confusa e cheia de dor, sentiu uma mistura de vergonha e culpa por ter ousado desejar tanta vida. Teve vontade de recuar como um caramujo envergonhado de sua existência. Com todo o ardor do seu coração, pensou:
– Criatura estúpida. Não sabe que é exatamente por isso que vovó não quer mais ouvir? Ela desistiu dos sons dos seres humanos por sentir que neles só se ouve grito, ódio e revolta. Precisamos ajudá-la a perceber que há outros sons mais bonitos e melódicos na vida: os sons que vibram lá do fundo do coração.
Mas, Virgínia estava fraca demais para se defender. Além disso, sabia que era só uma criança no meio de adultos rancorosos e inconsequentes. Mas, havia ainda uma esperança: seu pai.
Seu pai, assim como a avó e a própria Virgínia, eram alisadores de silêncio e devotos de passarinhos. Tinham alma livre e delicada de boto. A pequena, com lágrimas nos olhos, lançou seu último grito de esperança. Olhou profundamente nos olhos do pai, que estava escondido em um canto da sala, repleta de bocarras, e desejou com todo o seu coração que ele – o pai – tivesse coragem de ajudá-la a lutar pelo som da vida. Neste instante seus olhos se encontraram num ato sublime de pura amorosidade e o pai entendeu o coração da filha maldita.
Em uma transmutação milagrosa, ele inchou o peito antes minguado e, com voz firme e grossa, disse a todos:
– Egoístas. Não conseguem compreender que a vovó desistiu de ouvir porque não quer mais ouvir suas vozes monstruosas vociferando maldades? Não percebem que vocês estão matando os seus ouvidos um pouco por dia, com tanto ódio e tanta revolta no coração?
Ao proferir estas palavras com maestria e coragem, vi que os olhos do titio se encheram de lágrimas. Sim, seu coração havia sido tocado. O ser humano que ainda habitava o seu peito havia sido acessado por papai, o corajoso.
E a vovó, que estava como estátua paralisada em sua cadeira de balanço eterna, levantou-se como um cisco e disse:
– Sim, agora estou ouvindo. Agora posso ouvir. Pássaros cantam lá fora uma linda canção. Embalados por ela, cortejam-se para acasalar. Deste acasalamento um lindo passarinho nascerá. A este passarinho daremos o nome de esperança.
E todos os membros daquela difícil família, ao ouvirem esta linda oração da boca de vovó, puseram-se de joelhos em sinal de perdão. Haviam finalmente voltado a serem seres humanos. Haviam finalmente voltado a sentirem o som de seus corações apertados e miúdos de tanta dor, de tanta luta, de tanto ódio.
Ana Laura,
Achei linda a forma como você descreve a comunhão silenciosa entre a menina-velha e a velha-menina. Virgínia pode ter sido uma menina esquisita, mas acho que poucos se dão conta da riqueza interior que nasce da capacidade de pensar pensamentos “esquisitos.” Aguardo a próxima estória, tenho gostado demais!