Sem a palavra o mundo humano é impensável. É por ela que expressamos ideias, sentimentos e percepções de mundo, criamos realidades, nomeamos seres e coisas, raciocinamos e tentamos dialogar uns com os outros. De outro lado, quando manejamos mal a palavra ou nos desgarramos de sua função simbólica, afastamo-nos em demasia da verdade das coisas, distorcemos valores e temos dificuldade para nos entender minimamente uns com os outros.
Tendo-se em conta a riqueza simbólica e instrumental da linguagem, será meu propósito aqui refletir sobre, afinal, para que nos servem as palavras.
Primeiro, é importante considerar que só os humanos possuem competência em potencial para manejar a linguagem e, a partir dela, refletir sobre si e sobre o mundo.
Platão define, no discurso de Crátilo, o homem (ánthropos) como aquele que é capaz de examinar e raciocinar sobre o que vê. Mas o que significa, para ele, a capacidade humana de examinar e de raciocinar por meio das palavras?
A concepção platônica do conhecimento concebe que as palavras não revelam ao homem a verdade última e derradeira do mundo, mas que, por meio de seu manejo exitoso e prudente, as verdades do mundo são desveladas ao homem sempre de forma aproximativa e incerta.
Assim, quando Hermógenes indaga Sócrates neste discurso platônico a respeito de como as coisas são, o sábio lhe responde “Eu não digo coisa alguma, mas posso examinar contigo”.
Por meio desta resposta, Sócrates aponta alguns caminhos que podem nos ajudar a compreender a função da linguagem na experiência humana.
Primeiro, ele diz que não podemos chegar à essência das coisas e dos seres pela linguagem. Por ela, podemos tão somente nos aproximar desta essência, mas nunca chegar a descrevê-la por completo. Portanto, a linguagem carrega o selo de nossa condição trágica: buscamos o sentido e ele sempre nos escapa.
Diante disso tudo, para Platão, a atividade de pensamento consistiria na nossa capacidade de sustentar a dúvida e a ambiguidade sobre a verdade das coisas para, só a partir daí, podermos instaurar um verdadeiro diálogo em busca do conhecimento, em que está pressuposta necessariamente a nossa ignorância, a ambiguidade do mundo e o limite do real.
Freud percebeu muito bem como a palavra carrega, em seu aspecto primitivo, o caráter ambíguo do real. Em “A significação antitética das palavras primitivas” (1910), ele demonstra como, nas línguas mais antigas, tal como ocorrem também nos sonhos, há inúmeras palavras com dupla significação, sendo que uma delas representa o exato oposto da outra. Assim, primitivamente, a palavra que designaria luz também significaria escuridão, e a palavra que designaria forte, significaria ao mesmo tempo, fraco, e assim por diante. Este aparente enigma antitético expresso nas palavras primitivas seria explicado pelo modo comparativo como pensamos e significamos o mundo; o claro só pode ser concebido e conhecido em comparação com o escuro, o forte em comparação com o fraco, etc. Daí que é uma aquisição não muito tardia, no humano, a capacidade de separar o direito e o avesso do conceito, e a pensar em um deles sem a comparação consciente com o seu oposto. A conclusão freudiana é que, mediante o trabalho civilizatório que solicita coerência ao ser, o sentido antitético da palavra sofre recalque e passa a existir e a exercer seus efeitos desconcertantes a partir do inconsciente. O eu, nesse sentido, seria uma espécie de censor da ditadura que procura vetar ou, pelo menos disfarçar, o sentido ambíguo da palavra para manter uma aparente coerência discursiva.
Por isso o manejo da língua é sempre vacilante e, deveras, carrega um toque de fracasso, algo que os poetas e escritores conhecem muito bem. Há sempre um sentido que escapa no discurso, um dizer que não diz tudo, uma palavra que não é bem a que se quer, e outra que, dita casualmente, vale por mil.
O escritor, o poeta e também o psicanalista conhecem bem o sentido polifônico da língua e a tem como sua principal ferramenta de trabalho. São artesãos da palavra, manejando-a de modo a ampliar e a complexificar o seu uso comunicativo. Compreendem-na não em sua função concreta, mas retomam-na em sua função metafórica, criativa e transformadora do ser. Por isso Freud designou sua psicanálise como uma cura pela palavra.
Mas o que ele queria dizer com isso?
Para Freud, um sentimento ou uma ideia que não se casa com uma palavra, não existe no mundo humano e, portanto, não possui nenhuma efetividade transformadora sobre este. Um sentimento ou uma ideia sobre o qual não temos competência discursiva para descrever, não nos vale de absolutamente nada. Um grito não tem significado humano algum, enquanto não puder vir acompanhado de palavras que o adjetivem e o insiram no mundo dos significados compartilhados. Daí que, para Freud, é a palavra que funda a realidade psíquica e consequentemente o ser.
Esta perspectiva da palavra enquanto instauradora dos sentidos e afetos humanos, podemos encontrar no livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.
Em conversa entre a esposa do médico e o escritor cego, indagada por este se haveria palavras demais no mundo, ela responde que não se trata disso. Trata-se de termos sentimentos de menos ou da falta de palavras adequadas para expressá-los, o que significaria o mesmo que perdê-los.
Ora, sentimentos perdidos pela impossibilidade de encontrarmos palavras que os expressem são sentimentos que não servem à sua finalidade última, que é a comunicação intersubjetiva. Sentimentos que não fazem parceria amorosa com as palavras são como seres condenados a nunca nascer.
O escritor, o poeta, assim como o psicanalista são, portanto, dadores de nomes. Ao nomear um sentimento difuso a um paciente, ao descrever uma situação humana inominável, o analista e o poeta, respectivamente, criam realidades humanas passíveis de serem narrativizadas e, portanto, pensadas.
Na narrativa de Saramago, em que a morte da palavra é anunciada, podemos intuir uma espécie de crise narrativa do sujeito contemporâneo. Nunca se soube tanto do homem; nunca o homem teve tão enorme dificuldade em falar si mesmo. Nunca se escreveu e falou tanto como hoje e nunca se sofreu de tamanho mutismo das boas narrativas de si.
Portanto, a máxima freudiana da cura pela palavra continua valendo como nunca. A palavra cura; ela sutura as bordas do vazio; areja o solo asséptico do senso-comum; cria realidades com as quais ainda podemos sonhar; tece pontes e pactos; subverte a ordem séria das coisas; brinca com o sentido; costura silêncios e sons.
Como psicanalista, dedico, portanto, estas reflexões ao meu profundo amor e fé na palavra.
Referências bibliográficas
Freud, Sigmund. (1996). A significação antitética das palavras primitivas. In.: Freud, S. Obras psicológicas completsa de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol 11. pp. 157-166. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910).
Platão. Crátilo. Tradução de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget. 2001.
Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.
Conheci o site hoje por obra do acaso, ao procurar algo sobre Platão. Parabéns pela iniciativa e pelo conteúdo.
Alexandre, fico feliz que tenha gostado e agradeço o carinho. Abraços,