Sinto vontade de escrever algumas linhas para refazer a mim mesma o percurso íntimo que me faz lembrar porque, afinal de contas, gosto tanto desta época.
Passarei minha “ceia natalina” em trânsito, ou seja, viajando.
Olharei para as luzinhas pequenas de cada cidade e me lembrarei de que possivelmente dentro de cada uma daquelas casas haverá uma família reunida ceando. Por que viajar nesta data, alguns mais audaciosos me perguntaram.
Expliquei que aproveito esta data linda para lembrar a mim mesma o quanto estou viva e o quanto é bom viver; e nada melhor para celebrar a vida do que fazendo o que se ama.
Como uma das coisas que mais amo é viajar, então, porque não?
Uma das mais corajosas depois de querer saber por que eu fazia isso, permaneceu em silêncio e me confessou: “Tenho inveja de você. Queria não precisar ter que ir à casa dos meus parentes e fazer algo que não estou com vontade”.
E o que te impede? Perguntei.
Acho que eles não entenderiam.
Ainda neste mesmo dia, entre um preparo e outro da viagem, releio um trecho do adorável e humaníssimo monstro Frankenstein ou O Prometeu Moderno, da britânica Mary Shelley.
Abandonado logo após ter sido criado, Frankenstein perambula pela vida à espera de ser amado e reconhecido por aquele que lhe deu a vida e encontrar finalmente uma família humana calorosa que o acolha e lhe dê pertença.
Nesta época do ano, tendemos a ficar mais frágeis e vulneráveis ao nosso estado de desamparo. Um pouco como Frankenstein, ficamos desejosos de nos afagar nos braços de uma família amorosa que nos aconchegue e nos dê abrigo das áridas lutas da vida.
Acontece que este anseio, ainda que lícito e genuíno, está quase sempre fadado a terminar em frustrações.
Porque, se por um lado, o reduto familiar tão ansiado nestes períodos natalinos representa proteção e segurança, é também nas famílias que encontramos os maiores motivos para nossas infelicidades. E deste dilema entre anseio e frustração de amor, nenhum de nós escapa.
Quem, afinal, um pouco mais perspicaz, após uma noite natalina não terminou com uma terrível sensação de futilidade e de invisibilidade, com sua tia perguntando quando, afinal, irá se casar, ou com seu primo se gabando a todos de que passou em primeiro lugar no concurso?
E os Frankenstein, ou seja, todos aqueles que, como eu, não tem certeza sobre quase nada, nunca tem respostas prontas e brilhantes, sempre se sente um pouco fracassado, um pouco monstrengo, um pouco desadaptado? Onde encontramos abrigo para nossas falências?
Como sobrevivemos a uma festa em que o imaginário do sucesso, da felicidade fácil e dos caminhos óbvios é lugar comum?
Talvez o sentido da obra seja preciso também nisso. Frankenstein, ainda que não tenha encontrado abrigo para si no mundo das aparências humanas, encontrou-o lá onde o silêncio e a verdade reinam soberanos: nas majestosas florestas, na natureza insondável que dita o ritmo de todas as coisas; o mesmo sentido que reencontramos no rito original desta festa, muito mais pagã do que cristã.
Estamos falando da festa do deus Mitra, celebrada neste período há mais de sete mil anos antes de Cristo. Nesta data, os romanos celebravam o solstício de inverno, que significava a noite mais longa do ano. Depois desta noite de máxima treva, o sol permaneceria cada vez mais tempo no céu anunciando uma época de maior prosperidade nas colheitas e de fartura.
Trata-se,portanto, de uma festa de renovação das esperanças; esperança na vida, na circularidade do tempo representado pelas estações do ano, pelo nascimento e pela renovação.
Nada muito parecido com o que acontecerá hoje à noite em muitas casas do mundo todo onde pessoas se empanturrarão de comida e de bebida, muitas sequer farão uma prece para agradecer o quão generosa é a vida; depois, talvez falem mal da política ou dos ausentes; os mais abastados trocarão presentes caros e depois todos irão dormir muitos sem ter refletido, um minuto sequer, sobre o sentido de suas vidas.
Desculpem-me, mas disso não quero participar.
Amo demais as luzinhas que fazem acender em meu coração, a cada ano, a chama das esperanças renovadas; amo as músicas tristes e belas anunciando o nascimento da vida em meio à pobreza da manjedoura; amo demais a verdade para conseguir suportar fazer parte de uma festa farsesca como muitas das que ocorrerão hoje.
O que me lembro com enorme carinho nesta época é de minha infância querida em que, vestida com a melhor roupinha do ano, ia com minha mãe e meu irmão à missa e embalada por uma fé inabalável na vida, cantava cheia de devoção o hino Noite Feliz.
Depois, voltávamos, e antes da ceia fazíamos uma prece carregada de verdade, em agradecimento ao alimento sagrado nos dado pelo sacrifício de pequenos animais que foram mortos para que nós pudéssemos nos alimentar.
Hoje à noite, carregando os traços profundos deste bonito sentimento que marcou meu ser, celebrarei em meu peito cheio de alegria, a vida.
E, tal como Frankenstein, olharei à distância cada luzinha iluminando uma casa. Relembrarei junto dele que o que enche o coração de alegria não é uma farta ceia, nem presentes caros, nem cinquenta convidados, mas a verdade dos afetos.
Pensarei também que talvez seja só tomando certa distância das coisas é que possamos nos indagar sobre elas e retomar o sentido da rota.
Pensando agora, em resposta à curiosa indagadora que me perguntou por que viajar na noite de Natal, responderia que sou um pouco como Frankenstein: uma adorável figura estranha, sempre à cata do sentido das coisas, que para mim nunca teve nada de óbvio.