O filme Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles, me tocou de um jeito inesperado.
Mais identificada à empregada doméstica Zezé do que à Eunice ou suas filhas, lembrei-me das inúmeras vezes em que senti, tal como Raskólnikov, inveja das minhas colegas que tinham famílias cultas, politizadas e unidas como a de Rubens, Eunice e seus filhos, e que pude conhecer nos meus únicos dois anos de colégio privado, e, depois, na USP.
Não tive a sorte de pertencer a uma. Assim como milhões de brasileiros, nasci de pais pobres, pouco escolarizados e despolitizados que, na época da ditadura, lutavam com outros monstros: alcoolismo, falta de perspectiva e violência sexual e doméstica.
Por isso acho graça quando alguém politizado fica bravo com a indiferença e alienação do povo em relação à sua história. Pois, na classe de onde eu vim, é do padre e não do político que vem o amparo diário. O que me faz lamentar profundamente o fim da teologia da libertação.
Na minha segunda análise, minha analista, que veio de uma família culta e letrada, como, aliás, quase todos os psicanalistas, demorou muitos anos para compreender que o ódio que me corroria o espírito não era vergonha das minhas origens. E sim revolta por não ter tido as mesmas oportunidades que os bem nascidos, de estudar em bons colégios, cursar outras línguas e conhecer o exterior.
Sobre isso, minha vontade insana de fugir da falta de perspectivas da minha classe, foi tanta que consegui, estudando feito um cão, passar na USP. O que só consegui porque, por sorte, nasci inteligente e sistemática como um relógio.
Como uma trânsfuga de classe (termo que ouvi do escritor Edouard Louis), carrego marcas até hoje. Por exemplo, semana retrasada consegui comprar minha primeira passagem aérea ao exterior e fiquei duas noites sem dormir, vítima de uma ansiedade terrível.
Modos de ser que vêm da classe
Voltando ao filme, a postura sóbria, discreta e comedida com que Eunice enfrenta o drama do desaparecimento do marido, também é fruto de um modo de ser da classe a qual estas pessoas pertencem.
Pois, pertencer aos Paiva, aos Arraes, ou casar-se com um, significa, no Brasil, integrar famílias tradicionais de longa linhagem aristocrática, com grande influência política e alto capital simbólico, educados nos melhores modos e na ilustração. Sendo estas as pessoas que compõem hoje o que chamamos de elite pensante brasileira, grande parte dela representantes da esquerda (ou do que restou dela).
Assim, são pessoas que, ao contrário de mim, carregam um inabalável senso de autoestima e uma noção clara de seus direitos, devido ao fato de serem quem são.
Sobre isso, vendo a postura estóica de Eunice, foi inevitável não compará-la à minha mãe.
Há dez anos, seu companheiro morreu misteriosamente na prisão sem ela nunca ter sabido a causa, e nunca lhe passou pela cabeça, como fez Eunice, lutar pelos seus direitos de viúva, pois para ela, seus únicos direitos na vida são resignar-se e apegar-se à Deus.
Assim, do que ocorrem nas prisões brasileiras conclui que, no Brasil, a ditadura, entendida como uso indevido da violência pelo Estado sem quaisquer garantias de direitos para o lado mais fraco, nunca terminou, com a diferença de que hoje ela só atinge os mais pobres.
Quartinho de empregada
Já do quartinho de empregada da Zezé, lembrei-me das inúmeras vezes em que eu, minha mãe e meu irmão tivemos que dormir no “puxadinho” do apartamento de praia da minha rica tia avó.
Nestas ocasiões, para “pagar” a estadia, minha mãe trabalhava feito louca, servindo e carregando sacolas de compras, como se fosse uma empregada. Destas lembranças amargas, herdei minha jura de nunca mais me humilhar em troca de férias.
Da mesma forma, invejando o modo terno com que Eunice tratava seus filhos, mas sobretudo Vera, a filha mais velha à quem ela empresta um casaco para ir à Londres, pensei que minha mãe nunca pôde nos tratar assim porque a falta de perspectiva em sua vida brutalizou-lhe o espírito, tornando-a uma mãe impaciente e dura.
Da mesma forma que o lugar de onde eu vim me roubou a chance de me relacionar com meu único irmão, pois ele nunca me perdoou por eu ter escapado e ele não.
A propósito, tive a impressão de que aqueles homens horríveis, assassinos, brutos, sujos e esfaimados que ficaram na casa de Eunice enquanto seu marido era levado para a morte, não queriam sair daquela família, onde o clima era íntegro, respeitoso e bom, ambiente provavelmente muito diferente das famílias das quais vieram.
Considerações finais
Finalizando, este filme me fez refletir que enquanto a elite pensante brasileira não conhecer, de fato, os problemas reais enfrentados pelos pobres; e, enquanto os próprios pobres não forem capazes de refletir e produzir saberes sobre si mesmos, temas “chiques” como ditadura e democracia continuarão a ser assunto só de acadêmicos e jornalistas.
O problema, sobre o último ponto é que, pelo menos foi assim comigo, demora-se muito para conseguir entender o que está errado na sua situação. E nem posso imaginar como é ainda mais difícil para os pobres negros e homossexuais.
Por exemplo, demorei muitos anos para conseguir formular que miséria não tem só a ver com falta de comida na mesa, mas com se ter nascido em um bairro onde só há igrejas, bares, drogrados e meninas grávidas, por exemplo.
Outro ponto que podemos aprender com a postura corajosa e extrordinária de Eunice é que dificuldades e tragédias nunca faltarão nessa vida, independende da classe social que se venha, cabendo a cada um escolher entre a pena de si mesmo ou a transformação amorosa do mundo.
Transformação que depende, sobretudo, como disse lindamente certa vez a escritora francesa Marguerite Yourcenar, da capacidade interna de “cada um de ser capaz de lançar, pela primeira vez, um olhar inteligente sobre si”.
Assim como fez Sérgio. Um homem bom que morreu simplesmente por levar cartas de entes desaparecidos à famílias desesperadas. E que de subversivo não tinha nada.