Em tudo o que vivemos, em tudo o que fazemos, em cada lugar que habitamos, em cada pessoa que amamos, por cada filme ou livro que choramos, deixamos uma parte de nós. Despedir-se desta parte é como perder um dedo ou um braço, ou quem sabe, um pedaço do coração ou do fígado ou dos pulmões. E deixar para trás é sempre doloroso. Porque esta parte nossa, nunca mais a reencontramos. Aquele lugar ficará vazio para sempre. Só que para existir poesia é preciso haver vazios; é preciso o silêncio e a ausência para brotar o novo.
Categoria: Textos literários da autora
A borboleta
A borboleta se debatia contra o vidro e pequenas gotículas de sangue já escorriam de suas delicadas asas. A cena feriu seu coração. Ela precisava salvar a pobre borboleta. E foi então que começou a luta. Seus dedos finos e longos percorriam as asas da borboleta que fugia, assustadíssima, para o outro lado. A luta foi se intensificando até se transformar em um corpo-a-corpo. Ela suava, angustiadíssima. Será que ela não quer ser salva? Será que ser salvo não é bom? Talvez a borboleta esbelta estivesse exatamente fugindo da liberdade e por isso se trancafiara olhando o lindo jardim colorido através do vidro.
A lua e o mar
É com uma dor aguda que deixo ir tudo o que de belo um dia esteve em mim. A praia enternecida em seus tons crepusculares de pérola; o choro da criança amada que, como uma sinfonia límpida, regam o ar com seu desamparo de rosas; a paisagem luminosa que vai ficando para trás enquanto caminho a passos rápidos para que a despedida não me despedace; os sons agudos do pássaro cantante na manhã em que se anuncia a aurora milagrosa; o olhar fugidio do ser humano que quase se deixou capturar. É com pesar inelutável que deixo cada uma das conchas que tocaram os meus pés e que me lembram que estarei morto tão logo minha consciência venha despertar do grande sono que é a vida.
Prazer consumado
Na noite em que Helena soube da terrível notícia foi como se um vento frio e fúnebre percorresse toda a sua espinha dorsal. Naquele exato instante, ela sentiu-se desfalecer. Um ar gelado e inóspito sombreou sua alma, estado que perdurou durante todo o final de semana. Enquanto Pedro se debatia confusamente frente à notícia, pois tinha dificuldade enorme para se decidir se aquilo era bom ou ruim, motivo de alegria ou de imensa preocupação, Helena pôs-se a pensar de forma compenetrada porque reagira daquela maneira inesperada. Primeiro tentou dizer a si mesma que, afinal de contas, um bebê é sempre algo bom. Lembra esperança e renovação. Mas como sua alma não era afeita a romantismos, logo em seguida pensou consigo mesma, um pouco irada com sua tentativa de ser ingênua – coisa que nunca lhe caia muito bem – que bebês crescem e que coisas trágicas podem acontecer na vida de um infante sem que ninguém se aperceba disso. Decididamente, Helena não conseguia dar a si mesma pequenas e ilusórias alegrias mundanas que outras criaturas facilmente o faziam. Sua personalidade não deixava barato e isso lhe era mais um fardo do que uma dádiva: ela não se permitia não ir ao fundo de cada coisa.
A mesma hora
Um tédio imenso encheu o peito de Frida. É que ela havia percebido, pela primeira vez, que a passagem do tempo é inexorável. Tudo isso ela enxergou de uma só vez, no exato instante em que carregava a sacola de compras com dez batatas e um maço de rabanetes que iria usar logo mais para preparar o jantar, exatamente como fazia há trinta anos.
Depois da descoberta colossal, Frida passou a caminhar com passos duros pela rua. O inverno se extinguia e um princípio de explosão de vida começava a ensaiar seus primeiros movimentos.
Diante da flor amarela, Frida fechou os olhos. Estava horrorizada.
Olhava a convulsão das folhas secas que caiam uma a uma pelo chão, deixando a rua suja como um museu. O mesmo museu que preservara por tantos anos em sua alma com seus sonhos perdidos de infância, os suspiros que nunca deu, o sorriso que morreu antes de nascer.
Sobre abutres e água de alfazema
Caio não nasceu, rebentou. Era uma criança tão desajeitada que seu pai queria amá-lo, mas não conseguiu. Tudo nele era parvo. Seu ser fazia-se estabanado; tinha ares de estupidez branca, mas não porque fosse limitado ou incapaz. Era por desarvoramento de alma que ele não conseguia pensar com lucidez. Os seus dois únicos fracos sentidos na vida eram comer e dormir. Neste quesito era mais como os gatos, os cachorros, os tigres e os elefantes.
Selvagem, o pai de Caio havia esperado outro filho; alguém mais pronto, acabado como ele próprio julgava ser. Em sua lógica só o perfeito merecia ser salvo; o torto devia ser deixado aos abutres.
Acontece que na torta vida humana faltam abutres para devorar os tortos, os mal acabados, os nunca nascidos, os carentes de espírito. Na vida humana a lei implacável da sobrevivência dos mais fortes não é um fato consumado. Sempre há um gesto de amor que adota e muda o curso.
Felicidade roubada
O mar brilhante chamava o menino com seus braços verde-esmeralda. Era manhã de um domingo quente e o menino via o mar pela primeira vez. Fora o avô, seu avô duro e bom, que lhe proporcionara o encontro tão aguardado. Fugidos como duas pequenas lesmas, lá foram eles, como ladrões em busca de um quinhão de prazer: o avô guiando o caminhão enorme e o menino com seus pequenos olhos transpassando o limite das ferragens, com uma fome que pretendia engolir tudo de uma vez.
Chegaram e mal o avô teve tempo de estacionar o grande elefante vermelho, o menino zarpara com o coração batendo frenético como tambor. Abrira a porta num relampejar de olhos e, desembestado, correu com suas perninhas finas e um pouco tortas, em direção ao grande deus. No caminho, foi jogando suas roupas sujas, furadas do trabalho duro e precoce, um pouco prejudicado, é verdade, pelas brincadeiras irresistíveis de pneu com o irmão mais novo. Jogou tudo o que era sujo e roto, ficando só de cueca, com seu corpo esquelético de felino em formação.
O homem que prendia pássaros
A cena era brutal: pássaros que nasceram livres, lindos e coloridos, debatendo-se violentamente contra as grades da prisão. Aqueles pequenos pingos de milagre no meio do dia debatiam-se com tanta força e intensidade que de suas asas brilhantes o sangue já começava a verter; feridas fundas iam se formando por suas batidas frenéticas. A violência havia se imposto e os seres miraculosos nada podiam fazer contra ela. Estavam presos, vítimas da brutalidade. Marina e Pedro avistaram a cena horripilante soltando um grito surdo de horror.
Marina, frágil demais para suportar tamanha dor, sentiu seus olhos inundarem. Queria segurar a inundação que deixava sua alma exposta, mas não podia. Era translúcida demais.
Pedro, mais vigoroso de alma, pôs-se imediatamente a matutar como usaria sua força de leão para salvar os pingos de vida. Marina teve medo por seu amado, pois pensou que ele teria que ser tão robusto e vigoroso quanto às grandes gotas de chuva que lavam a poeira do horizonte, tornando-o límpido e fresco.
Rito selvagem
Ela caminhava em direção ao mar sem saber o que a movia. Alguém que a visse naquela tarde chuvosa, com seus cabelos ensebados teria pena.
Mas não era pena o que ela queria do mundo. O que ela queria era sentir horror e a única forma de chegar a isso era se tornar um ser medonho de unhas sujas e verdes.
O mar também a lembrava de seu próprio pai que morrera anos antes, um exímio nadador, mais peixe que humano.
Os irmãos
Flávio e Pedro eram irmãos gêmeos. Disputaram desde sempre o mesmo ventre, o mesmo espaço, o mesmo amor. Nascidos, a mãe chegava a confundi-los de tão iguais que eram, exceto pelo gênio. É que Flávio era mais parecido com a mãe, segundo seus próprios dizeres e por conta disso ela o amava mais que ao outro. Apesar de tal realidade evidente, isso nunca lhe chegou à consciência:
– Imagina amar um filho mais que outro? Que pecado!
Já crescidos, ambos ingressaram na Universidade. E, como o destino não deixa por menos, o inevitável aconteceu. Flávio e Pedro apaixonaram-se pela mesma moça: a linda Dulcinéia.
– Adivinha quem ela escolheu?
– O Flávio. Óbvio! Ou você acha que o destino brinca em serviço?
Pedro, enlouquecido de tanta dor, não aguentou este golpe. Ao saber da escolha de Dulcinéia, esbofeteou a cara do irmão, quebrou-lhe o nariz e desapareceu para sempre em sua dor insana. Nunca mais se soube dele.