A borboleta se debatia contra o vidro e pequenas gotículas de sangue já escorriam de suas delicadas asas. A cena feriu seu coração. Ela precisava salvar a pobre borboleta. E foi então que começou a luta. Seus dedos finos e longos percorriam as asas da borboleta que fugia, assustadíssima, para o outro lado. A luta foi se intensificando até se transformar em um corpo-a-corpo. Ela suava, angustiadíssima. Será que ela não quer ser salva? Será que ser salvo não é bom? Talvez a borboleta esbelta estivesse exatamente fugindo da liberdade e por isso se trancafiara olhando o lindo jardim colorido através do vidro.
Este pensamento fez gelar sua espinha. Por que uma borboleta fugiria da liberdade? Por que? Ela nunca havia pensando com tanta seriedade sobre isso provavelmente porque ela mesma passara longo tempo fugindo do lindo jardim, olhando a vida pelo vidro. Lembrou-se de sua amiga que, lindíssima, jogou seu corpo cheio de tédio do décimo andar do prédio depois de longos e bem vividos vinte anos de casada. Todos perguntavam-se porque aquela linda mulher havia feito isso? Ninguém sabia responder. Talvez aquela mulher tenha tentado, como a borboleta, fazer ensaios tímidos de se jogar contra o vidro na escuridão de seu quarto às quatro ou cinco da madrugada, a hora mais perigosa que existe. Devia ser por isso que os suicidas preferiam este horário para colocarem um ponto final no frenesi que é viver. Aquele horário em que a noite já faz sua despedida e os primeiros raios de sol ameaçam irromper enchendo o coração de uma esperança insuportável que faz pesar a respiração e deixa o coração oprimido de tanta náusea. Todo nascimento é doloroso e perigosíssimo. Depois de nascer, todos estamos a salvos, a borboleta e também a moça ingênua que queria a todo custo salvá-la. Acontece que neste dia, exatamente neste dia, a vertigem se deu para ela. Ao ver a borboleta se machucando contra o vidro não pôde deixar de pensar em si mesma e em seus longos anos de náusea. Não pôde deixar de pensar no olhar triste e humilhado da dona da loja da esquina que há trinta e cinco anos vende as mesmas coisas e responde sempre com seus dentes brilhantes aos seus clientes fiéis que sim, que está tudo bem e que hoje ela está felicíssima. É possível estar felicíssima? A borboleta respondia insistentemente que não. Que ela não queria ser salva, que a claridade insuportável do jardim brilhante lhe oprimia o peito de veludo, que o sol lhe era insuportável naquele dia e que tudo o que ela queria naquele momento era se debater, dura e morta, contra o vidro incolor. Por favor, que a deixassem fazer isso ao menos uma vez na vida! Porque sendo borboleta deveria almejar, com a naturalidade de um elefante, a odiosa liberdade? Estar protegida sob o vidro da realidade era muito mais tranquilizador. A claridade era tão límpida e a realidade tão duramente viva, cheia de minhocas microscópicas se mexendo sem parar que era difícil olhar sem se estar míope. A miopia salva a alma de muitos. Naquele instante a miopia vinha salvando a alma incolor da borboleta que, num pequeno suicídio quotidiano, jogava-se contra o vidro sujando-o de sangue verde e de lama. Depois da luta, do corpo-a-corpo imundo entre ela e a borboleta, finamente, seus dedos longos e finos conseguiram capturá-la e, sim, ela foi salva. Quem foi, afinal, salva? Suas asas duras bateram-se freneticamente contra o ar inerte e ela levantou voo indo na direção do seu instinto mais primitivo que era o céu. O coração dela se desoprimiu. Conseguira salvar a linda borboleta e a esperança estava enfim reconquistada. Arrumou-se de modo delicado, passou a mãos brancas pelo vestido de cambraia tirando dele qualquer vestígio da luta selvagem que havia travado com a borboleta. Não queria que ninguém descobrisse que ela havia recém-saído da luta cruel. Também não queria ser pega em seu insistente momento de quase-desesperança. Sua alma era muito cor-de-rosa. Melindrava-se com qualquer susto. Saiu de seu prédio com o olhar ainda um pouco carregado de doce culpa por ter feito a borboleta desejar o voo. Sentia-se heroica em seu ser completo e luminoso mais uma vez. Deu exatos dez passos pela rua tranquila em que morava havia pouco tempo. O dia estava lindo. A hora mais perigosa já havia passado, ela pensou. Mas ao levantar o queixo e mirar o horizonte da rua límpida avistou um corpo inerte estendido no chão. Havia acabado de se lançar contra o automóvel que, àquela altura, passava em altíssima velocidade. O morto, vestido socialmente, aparentava ser um jovem rico e bem nutrido com seu café da manhã recém-tomado. A borboleta – a mesma do sangue verde no vidro – jazia pousada em cima da cabeça do jovem defunto e olhava para a moça com o mesmo minúsculo e irritante olhar que possuem todas as coisas não compreendidas.