Para tecer minhas reflexões sobre este relevante tema parto de algumas observações colhidas ao longo dos meus anos de experiência como clínica e supervisora. Como supervisora, não é incomum perceber no terapeuta supervisionado a emergência de fortes sentimentos contratransferenciais com relação aos pais da criança atendida. O rol de sentimentos é variado, mas em seu espectro estão presentes ciúme, busca de pacto com um dos membros do casal e rivalidade com o outro, competição com relação à capacidade de cuidado parental (“eu sou melhor pai ou mãe que ele ou ela”), inveja e idealização. Como clínica no atendimento de crianças e pais observo o forte impacto que a transferência dos genitores, estabelecida muitas vezes já no primeiro contato telefônico, exerce sobre a mente do analista.
Para Lacan a contratransferência do analista emerge no instante em que este resiste a ocupar o seu lugar, que é o lugar do não saber. De outro lado, quando os pais nos procuram eles acreditam que o analista tem um saber sobre eles dos quais se sentem despossuídos ou, no mínimo, incapazes de indagar. Frequentemente pedem-nos para que falem sobre eles, do que estão fazendo de “certo” ou de “errado”, do que devem ou não fazer. Depositam no analista a figura de um orientador que irá lhes falar do alto de seu saber científico sobre suas (in) adequações com relação às funções parentais. Desnecessário dizer que não se deve atender a esta demanda.
Mas, se o analista não irá ser o “orientador” de pais, o que ofertará então?
Ele ofertará o seu silêncio e a sua escuta interessada, não naquilo que os pais dizem, mas naquilo que estão dizendo para além de seus dizeres. Sua escuta deve se centrar nas lacunas, nos lapsos de memória, naquilo que se quer esconder do eu, mas que insiste em fazer falar apesar da fala e para além dela. Tudo isso para poder fazer falar o inconsciente. Vou citar um pequeno exemplo: o analista está conversando com uns pais. Procuraram auxílio porque o filho está agressivo. A explicação dada por eles para explicar o “problema” diverge radicalmente. Eles discutem e solicitam que o analista se posicione a favor de um ou de outro. Este silencia. Em seguida informam, de forma despretensiosa, que esta criança é o terceiro filho, embora o casal só quisesse dois. Porque o tiveram, se só queriam dois? Fora acidental? Indaga o analista. O pai responde, contrariado, porque sim. A conversa prossegue em clima bélico. Mais adiante, o analista insiste: gostaria muito de saber porque tiveram mais um filho se me disseram que só queriam dois? Agora a mãe chora e finalmente diz: Eu queria uma menina! Meu sonho era ter uma menina. É mais fácil de cuidar. Fizemos vários procedimentos genéticos, mas ainda assim ele nasceu homem. Só descobrimos que X (a criança) era menino aos oito meses. Não é preciso ir muito longe para compreender que parte da agressividade desta criança era uma espécie de salvaguarda de seu senso de masculinidade, visivelmente ameaçado pelo desejo materno.
Pois bem. Porque a mãe não informou desde o início ao analista sobre o seu desejo de que X fosse uma menina? A resposta mais psicanalítica seria: porque ela sabia e não sabia. Ela sabia e não sabia que esta informação poderia ser a chave para compreender a problemática entre ela e o filho. Porque ela queria e não queria saber disso. Porque possivelmente tinha medo do julgamento do analista a respeito de não ter conseguido amar suficientemente seu filho homem.
Agora vejamos os sentimentos por parte do analista. Ele precisa se perguntar seriamente se está preparado para lidar com esta situação. Façamos um exercício imaginativo: esta mulher está na sala de parto. Ela agora já sabe que fará nascer um menino. Não há mais volta. Ela quer amá-lo, mas não consegue. Queria uma menina a qualquer custo. Ela sabe que deveria conseguir amá-lo porque “todas as mães deveriam amar seus filhos, independente do sexo”, mas ela não consegue amá-lo da forma plena como imagina que amaria uma menina. A problemática narcísica é evidente: amar a menina como ela mesma, mas esta teoria não é suficiente para tirar o analista do apuro por perceber, consternado, que há situações humanas em que mães não conseguem amar seus filhos homens. Ouvindo esta mãe, o analista pode se indagar: será que minha mãe amou o meu sexo? Suponhamos que se trate de um analista homem. Ele pode se lembrar de situações em que sentiu claramente que havia uma cumplicidade entre as mulheres (entre sua mãe e sua irmã, por exemplo) da qual ele nunca pôde fazer parte por ser possuidor de um pênis. E pode ter sentido inveja por isso, ou raiva ou mágoa por este fato. Ou pode se lembrar, ele próprio, de como tentou agradar a mãe, tornando-se mais feminino. Quem sabe até se tornou analista por isso.
De toda forma, o que estou querendo dizer é que o analista está implicado até o último fio de cabelo em sua escuta. Ele escuta com a carne e não com o cérebro. Ele deve tentar conseguir chegar lá onde esta mãe esteve no dia em que descobriu que X era menino e não menina. E chegando lá, deve suportar olhar o que está vendo, sem romantismos, nem defesas. Por isso o lugar do analista é um lugar tão difícil de se estar.
Quando se tenta alcançar este lugar com o cérebro, com a razão, não chegamos lá. O que fazemos é fingir. Para chegar lá o analista deve se despir de seu eu imaginário, abandonar certezas, mergulhar sem boia de proteção no inconsciente que se apresenta ali, vivo e pulsante, na sala de atendimento. E isso é tremendamente arriscado. Por isso costumo dizer que ser analista não é para quem quer, mas para quem pode. Obviamente não se trata de pura e simples vocação. É preciso ter disponibilidade consciente de aguentar o mal-estar.
Voltando ao caso em questão, se o analista não consegue fazer este mergulho e tentar ir lá onde esta mãe esteve, ele fará racionalizações. Irá orientá-la, como um bom psicólogo, que não se deve amar mais um filho ou outro por causa do sexo. Que ela deve ver a criança X como ela é; todas estas falas que ficam no registro do imaginário, de como “as coisas deveriam ser”, e que servem mais para acalmar o analista do seu mal-estar de estar diante da mãe que não pode amar o seu filho homem do que para se comunicar com o inconsciente dela, mãe.
Concluindo, se, seguindo Lacan, a contratransferência é a resistência do analista a ocupar o seu lugar, sem boia de proteção, ouvir os pais irá requerer do analista ir ao encontro da vivência sempre traumática que é ter um filho. Se ele nunca pôde ouvir esta ideia perturbadora – a de que ter um filho é algo traumático para o eu – não poderá ser eficiente em sua escuta do inconsciente. Lembro-me agora da descrição tenebrosa da antropóloga Elisabeth Badinter em “O mito do amor materno” a respeito das mães da Idade Média que jogavam seus filhos para serem devorados pelos cães. Nesse sentido, o amor materno é uma formação reativa contra o desejo de matar a criança que toda mãe vivencia, com maior ou menor consciência quando se sabe grávida.
Para finalizar, concluo que a beleza e o drama do trabalho do analista consistem na aposta, sempre arriscada, que ele deve fazer em seu próprio inconsciente para pensar o nunca antes pensado, imaginar o até então inimaginável. Se isso é possível, ambos ganham, pais e analista. Se não, penso que o que se fazendo naquele momento é qualquer outra coisa, mas não psicanálise. Nesta, a aposta é sempre arriscada e o que está em jogo o próprio ser do psicanalista.
Referências bibliográficas
Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Lacan, J (1992). A crítica da contra-transferência. In: Lacan, J. O seminário, livro VIII, p. 184. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.