As ideias contidas neste texto são fruto de uma série de reflexões que pude fazer ao longo da semana passada e que foram motivadas pelo suicídio do ator Walmor Chagas e pelo filme francês “Amor”, de Michel Haneke, em exibição nos cinemas.
O suicídio de Walmor Chagas:
Vamos ao primeiro. Em junho do ano passado, assisti no canal Globo News a uma entrevista do ator Walmor Chagas, divulgada no programa Starte.
Nesta entrevista, logo depois em que ele contou sobre a morte de sua companheira Cacilda Beker, que teve um infarto fulminante apos encenar “Esperando Godot” de Samuel Beckett, a entrevistadora pergunta a ele sobre suas perspectivas futuras, que responde: “Que venha a morte. Eu não tenho medo de morrer. Afinal, o que um homem na minha idade pode esperar mais? Eu só quero que seja uma morte interessante. Morrer de avião deve ser bastante interessante.”
A entrevistadora, visivelmente incomodada com a resposta do ator, tentou encorajá-lo e animá-lo “a não pensar nestas coisas”. Eu achei muito corajosa e autêntica sua resposta. Mas, a questão é que, em meio a estas reflexões, eu também me perguntava: Mas o que é que ela espera ouvir de um homem de oitenta e tantos anos? Que ele queira viver até os cento e vinte? Por que é tão incomodo ouvir que uma pessoa está cansada de viver? Walmor nesta entrevista pareceu deixar muito claro que não pôde suportar a dor pela perda de sua esposa e que, depois disso, sua vida perdera o sentido, algo que o levou a se isolar em seu sítio de onde só saia raramente.
Pois bem. Em janeiro de 2013, neste mesmo canal televisivo, a seguinte notícia é veiculada por uma repórter: Walmor Chagas morreu!
Muito interessante o modo como a informação foi noticiada e as tentativas de esconder o incômodo fato de que ele havia se matado. A repórter dizia que o grande ator havia morrido e que, apesar de ter sido encontrado sentado na cozinha com uma arma no colo e um tiro na cabeça, pelo caseiro da fazenda às cinco horas da tarde, a polícia ainda estava investigando a causa da morte e que havia uma chance de ter sido furto!
Mecanismo de defesa da negação:
Nesta situação vemos um exemplo emblemático do uso do mecanismo de defesa da negação visando a evitação da dor provocada pela percepção da existência do anseio pela morte. Em seguida, é anunciado o programa Starte. Penso eu: será reprisada a entrevista de Walmor, como uma forma de se prestar homenagem a ele. Não é isso que acontece com os atores queridos?
Não foi assim que aconteceu com a morte de Hebe Camargo (que morreu de câncer, ou seja, uma morte não intencional), a quem tivemos que assistir por meses a fio programas e homenagens? Para minha surpresa, mas nem tanta, o programa não seria a reprise da entrevista, mas sim sobre um pintor francês, apontando para a necessidade de silenciamento sobre o assunto.
Suicídio em massa e não visibilidade do sofrimento mental:
Rossevelt Cassorla, psicanalista que desenvolveu muitos estudos sobre o suicídio, afirma em um de seus textos sobre o tema, que um dos argumentos para que a mídia evite o uso desta palavra diz respeito ao medo de que a notícia estimule suicídios em massa. Eu acrescentaria a este motivo, que a negação da informação do suicídio de Walmor se deve a dificuldade que existe, no âmbito social, de se valorizar e discutir as questões do sofrimento mental, que podem levar um sujeito a tirar a própria vida. Então, funciona mais ou menos assim: Se a gente não falar do bicho, ele passa a não existir!
E aí entra o segundo fato, que veio dialogar diretamente com o meu incômodo “televisivo”.
Filme “Amor” de Michel Haneke:
Para quem ainda não viu, não pode perder o filme “Amor” do diretor Michel Haneke.
Vou contar a história de forma bem resumida: retrata a vida de um casal de idosos por volta dos oitenta anos, ambos musicistas brilhantes. Anne, a esposa, depois de assistir à apresentação de um aluno seu sofre uma isquemia que paralisa o lado esquerdo de seu corpo. Sua condição, agora de extrema dependência do marido, vai se deteriorando cada vez mais e ela pede a ele: “Não deixem que me vejam desse jeito. Não quero que se lembrem de mim assim!”.
Junto da paralisia, surge um quadro demencial que deixa Anne na cama, usando fraldas, sendo alimentada por sondas e cuidada pelo marido zeloso. A filha, incapaz de suportar a percepção da condição deteriorada de sua mãe, sugere ao pai que a coloque em uma clínica. Em suma, solicita a ele que leve para longe dela o mal cheiro que exalam a deterioração humana e a proximidade da morte.
O marido, devotado à promessa que fez a sua mulher, de que não a levaria para o hospital em hipótese alguma, recusa veementemente a solicitação da filha e passa a evitar cada vez mais que esta veja a mãe.
Isolado com sua profunda dor de ver sua mulher, outrora tão ativa e vivaz, minguar na cama, cheia de feridas e gritando incessantemente que “dói”, ele, depois de contar a ela uma dolorosa história sobre sua própria infância, a mata asfixiada com um travesseiro.
Até quando devemos prolongar a vida humana?
Lembro-me que quando estagiava no hospital atendendo pacientes terminais, ficava muito intrigada com a raiva que eles despertavam na equipe quando diziam que não queriam mais viver. O discurso comum entre médicos e enfermeiros era normalmente este: “Mas como? Você não pode entregar os pontos deste jeito?”
Lembro-me também da minha profunda angústia diante da morte, do mal cheiro exalado pelas doenças e pelo imenso vazio deixado pelos pacientes que eu atendia em uma tarde e que na manhã seguinte haviam “partido”. Nos momentos em que, auxiliada pela minha análise, podia ter um olhar mais expandido, eu frequentemente me perguntava quem estaria mais assustado neste momento? O paciente que estava cansado de viver ou a equipe que teria que lidar com seus sentimentos de impotência e de não compreensão diante do fim?
Afinal, quando a repórter insiste para que Walmor se anime ou quando o nosso sistema de saúde gasta contas altíssimas para se preservar a vida vegetativa, a quem é que estamos servindo? A qual desejo? Estaríamos servindo realmente a um real desejo destas pessoas de não querem morrer? Ou estaríamos tentando nos acalmar e fazer as pazes com os nossos mais terríveis e assustadores sentimentos, despertados pelo contato direto com a morte?
A ideia de suicídio talvez não chocasse tanto as pessoas em geral e a opinião pública se pudéssemos tomar contato profundo com a percepção de que viver é um peso e uma luta constante entre o desejo de viver e o desejo de morrer, ao qual todos nós respondemos todos os dias.
Amor?
Acho que o nome do filme faz uma alusão interessante a esta discussão. Qual seria uma real atitude amorosa por parte do marido de Anne? Prorrogar a sua vida em condições debilitantes e não humanas? Ou, num ato de compaixão e profunda compreensão do sofrimento de sua esposa, acabar com o seu sofrimento, como de fato ele fez? Em minha perspectiva, o marido de Anne não cometeu nenhum crime. Muito pelo contrário! Pôde compreender, num momento de profunda comunicação com a dor de sua esposa (e de sua própria) que a vida precisaria chegar ao fim naquele momento. Afinal, tudo o que é vivo, morre. Tudo o que floresce, também fenece. Este é o ciclo da vida-e-morte que marca a todos nós.
No caso de Walmor, quem de nós poderá dizer qual o nível de sofrimento que suporta uma mente? Quem de nós poderá dizer, diante de um sofrimento que às vezes é insuportável, que a vida precisa ser preservada a qualquer custo?
Acho que este tipo de discussão, sobre até quando deve ser prorrogada a vida humana e em quais condições, normalmente é emperrada por discursos religiosos e “científicos” que apregoam que a vida precisa ser mantida custe o que custar, inclusive a de fetos anencéfalos! Da minha parte, acredito que este tipo de discussão moralizante pode esconder dificuldades mais profundas no enfrentamento da nossa condição humana mortal, finita e absolutamente frágil. Além disso, tomam como óbvia a definição do que seja vida.
De qualquer forma, não há respostas prontas para todas estas indagações, mas como aprendemos com a Psicanálise, mais importante do que termos respostas, é não deixarmos de fazer perguntas, as únicas que podem nos ajudar a colocar algum sentido naquilo que, às vezes, parece não ter sentido algum.