Já faz um tempo que venho me dedicando a estudar as tragédias gregas, produzidas e encenadas na pólis durante o século V a.C. – período áureo e próspero vivido em Atenas que, nesta época era governada pelo tirano Pisístrato. Apesar de os gregos terem escrito muitas tragédias, muito deste material se perdeu no tempo, chegando até nós algumas das produções de três autores – Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.
O nascimento das tragédias
Os helenistas (estudiosos que se debruçam sobre o período clássico da história) afirmam que a tragédia grega é fruto de um período histórico, social e cultural muito específico de Atenas – marcado por um período áureo com intenso desenvolvimento econômico, cultural e artístico. Quando Atenas entra em declínio, as tragédias desaparecem, embora deixem o seu valor imorredouro até os dias de hoje, para nossa sorte!
As tragédias derivaram dos mitos, sobretudo aqueles descritos por Homero, na Ilíada e na Odisseia, mas havia uma diferença marcante entre eles. Em Ilíada e Odisseia, por exemplo, a condição humana é exaltada e as dificuldades encontradas por eles eram relacionadas aos deuses.
Nas tragédias, a conduta humana bem como suas escolhas e consequências são trazidas para o primeiro plano, cabendo ao humano a responsabilidade pelo seu destino e por suas decisões. É o homem, portanto, que deve arcar com suas escolhas, aceitando o seu sofrimento não como algo determinado pelos deuses, mas como fruto de suas decisões individuais. E é aí que está a riqueza das tragédias.
Notem que se trata de uma visão muito diferente daquela empreendida pelo pensamento religioso que apregoa que o sofrimento é uma forma de purificação da mente para se chegar ao paraíso. Neste caso, existe, em última instância, uma visão esperançosa e otimista sobre o destino humano, já que no final todos nós poderemos ascender aos céus, se formos bons.
No caso dos gregos, eles acalentavam uma visão do humano bem diferente disso. Para eles, o sofrimento é parte integrante da condição humana. Também não há uma dimensão de justiça neste sofrimento – ele arrebata a todos, inclusive os bons – algo que é diametralmente oposto à visão religiosa, muito arraigada em nossa sociedade. Para o pensamento religioso, os bons serão exaltados e os maus serão julgados e punidos e, se aos bons existe o sofrimento, é para ensinar-lhes algo, para lhes purificar a alma.
A consciência filosófica – “Penso, logo existo”
Um pouco mais tarde, com o desenvolvimento da filosofia, sobretudo com Descartes e Platão, a busca pela consciência humana se tornou mais teórica, mais especulativa e menos vivencial, como era apresentada nas tragédias. É por isso que Lacan diz que as tragédias representavam aquilo que o humano não consegue alcançar com a razão. Em suas próprias palavras, a tragédia “pensa com os pés” (Lacan, 1974/2002).
Nós sabemos, filhos como somos da modernidade, que herdamos em nosso modo de conceber a nós próprios muito desta visão racionalizante e filosófica sobre o humano – algo que se resume bem na máxima de Descartes “penso, logo existo”. Mas, para os gregos, sobretudo durante o período trágico, a condição humana não é para ser pensada, é para ser colocada em ato, vivida e levada até as últimas consequências – algo que Lacan irá retomar, correlacionando isso com a ética da psicanálise, assunto que trataremos adiante.
Antígona e a ética trágica
Levando-se em conta que há muitas miríades de possibilidades para discutirmos as tragédias, escolherei uma que considero fundamental que é a questão da responsabilidade diante das próprias escolhas, levada às últimas consequências, algo que se relaciona fortemente à dimensão ética do humano – algo que chamo de ética trágica diante da vida.
Para discutir esta questão tomarei como modelo a heroína trágica Antígona, apresentada na peça de mesmo nome escrita por Sófocles. Junto de Antígona, temos Édipo Rei e Édipo em Colono – todas escritas por Sófocles – compondo o que se conhece por trilogia tebana. A meu ver, todas elas tratam desta questão da responsabilidade para com as próprias escolhas e de uma conduta ética trágica diante da vida.
Para quem não conhece a tragédia, vou relatá-la brevemente.
A tragédia começa com um diálogo entre as irmãs Antígona e Ismênia, filhas de Édipo com Jocasta (sua mãe) sobre a ordem dada por Creonte (tio delas) referente ao sepultamento de seus dois irmãos – Etéocles e Polinice – que se matam em uma disputa pelo trono de Tebas. Ocorre que Creonte decretou que somente Etéocles fosse sepultado como um cidadão digno enquanto Polinice foi proibido de ser sepultado, tendo seu corpo jogado para ser comido por aves carniceiras. Isso porque, segundo ele, Etéocles lutou bravamente em prol da cidade e morreu com inigualável bravura, enquanto Polinice retornou do exílio com o propósito de destruir Tebas e ansiando derramar o sangue de seus parentes e reduzi-los a escravidão. Julgado por Creonte como criminoso, o corpo de Polinice foi proibido de receber as honras fúnebres e de ser enterrado dignamente. Antígona recusa esta ordem de Creonte e tenta pedir o auxílio de Ismênia para enterrar o irmão, sangue do seu sangue. Ismênia, preocupada com a lei de Creonte e temendo as represálias pelo seu não cumprimento, decide não ajudar Antígona que, sozinha, enterra o irmão, contrariando a ordem de Creonte. Quando sabe que a sobrinha teve a audácia e a coragem de contrariar sua ordem – interpretada por ele como visando ao bem comum de Atenas – manda prender Antígona para deixá-la morrer enterrada viva. Seu filho Hémon, que iria se casar com Antígona, ao saber da ordem do pai, tenta dissuadi-lo, mas não consegue. Ele está cego com o seu desejo de fazer o bem! Diante disso, Antígona se enforca, em um ato de extrema coragem e Hémon, seu futuro marido, mata-se com uma espada. Por fim, Euridíce, esposa de Creonte e mãe de Hémon, ao saber do suicídio do filho, tira a própria vida com uma faca. Creonte, ao saber das mortes que sua busca incessante pelo bem comum gerou, suplica que lhe venha a morte, pois não poderá ver clarear outro dia ao que o coro responde, em um belo e profundo diálogo sobre o humano:
Coro: Oh, Mas isso já é futuro! Pensemos no presente, ó rei! Que cuidem do futuro os que no futuro viverem.
Creonte: Tudo o que eu quero está resumido nesta súplica (de morrer)… Ouvi!
Coro: Não formules desejos… Não é lícito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!
Obviamente esta precária descrição da tragédia não consegue transmitir ao leitor a beleza da peça, com seus diálogos repletos de significados e de compreensões profundas sobre o humano. Por isso, sugiro que a leiam na íntegra!
Vamos começar por este diálogo final entre o coro e Creonte. Diante do fato de ter que lidar com as consequências funestas dos seus atos (o suicídio de três pessoas, sendo duas delas seu filho e sua esposa), Creonte quer morrer. Não quer permanecer vivo para ter que arcar com as responsabilidades por seus atos! Quer que chegue logo o futuro, quer que o tempo passe para não ter que lidar com aquilo, ao que o coro responde sabiamente: “que cuidem do futuro os que vivem no futuro”. Qual a ideia central contida neste belíssimo diálogo? Estaria o coro remetendo Creonte (e a todos nós) a inelutável necessidade de nos responsabilizarmos pelas consequências de nossos atos? E por quais convicções Creonte agiu como agiu? Estaria ele cego pela necessidade de fazer o bem, de preservar o bem comum da pólis?
Renato Trachtenberg em um interessante artigo intitulado “Cesuras e des-cesuras: as fronteiras da (na) complexidade” publicado na Revista de Psicanálise n. 2, vol. 47, escreveu que o bem em excesso se torna um mal, problematizando as concepções tão fortemente arraigadas que temos sobre o bem e o mal.
Creonte estava convicto de sua decisão que era a de não conceder privilégios a pessoas de seu próprio sangue, pois, segundo ele, um governante que faz isso não é justo com o povo. Também considerava não poder conceder privilégios a um criminoso. Dentro de sua lógica, ele acreditava ter razão! Mas, como o bem levado às últimas consequências, torna-se um mal, ele acaba por ter que se responsabilizar pelo seu bem – mal cometido. Acredito que Creonte é um belíssimo modelo para problematizarmos e relativizarmos o que é o bem e o que é mal, sobretudo quando a decisão cega de seguir as regras pelo “bem comum” impede o humano de relativizar suas posições.
E Antígona? O que faz ela diante da lei de Creonte?
Ela não recua. Solitária e contando somente com seu lastro interno – suas verdades, das quais ela não poderia abrir mão, pois aí sim estaria morta em vida – parte para realizar o que precisa. E não recua, mesmo diante da morte – aquela que todo ser humano teme, por excelência. Segundo Lacan, Antígona é o modelo máximo daquela que arca com os custos do seu desejo, mesmo que isso lhe custe a vida. É aquela que rompe com o discurso da lei e da ordem para surgir como um indivíduo que deseja e paga pra ver! Por isso, seu brilho chega a ser quase intolerável, dado o seu primitivismo e contato com o real. (Lacan, 1969-70/1988).
Em nenhum momento da peça vemos Antígona recuar ou se lamentar pelo seu destino funesto – a morte. Também não sente que isso é um castigo vindo dos deuses. Ela sabe que está pagando pela sua audácia – a de problematizar o que já está dito e escrito – aquilo que não pode ser colocado em diálogo. Só que ela já tem a morte como companheira, como diz Rubem Alves, e, portanto, não a teme. Sente não poder trair suas próprias leis – as leis do sangue – as únicas que podem lhe dar algum lastro de sentido à existência.
Mas, se trata de um caminhar absolutamente só – uma responsabilidade solitária e ética com a condição trágica da nossa existência. Podemos hipotetizar: e se Antígona não fosse Antígona? E se ela recuasse diante da lei de Creonte? Como viveria a partir dali? Estaria realmente viva? Ou morta em vida? Pois, ao que tudo indica, a concepção de vida expressa nesta belíssima peça nos remete àquilo que precisa ser feito por cada um de nós para que não nos tornemos meros expectadores da nossa própria existência.
Mas, para isso é preciso muita coragem!
Para terminar, gostaria de relacionar esta peça com o que nos propõe a ética da psicanálise. Lacan considerou que Antígona personifica a própria ética da psicanálise. Eu acrescentaria, a ética trágica da psicanálise.
Mas, qual a relação que podemos fazer entre estas duas coisas?
Quando Freud criou a psicanálise, mais do que criar um método de tratamento, ele criou uma nova ética. Uma ética trágica da vida que reside no seguinte: Nós seres humanos somos absolutamente responsáveis por aquilo que desejamos, mesmo que desconheçamos, em absoluto, que desejos são estes! Radicalizando esta ideia, o destino não existe, pois a vida é consequência das nossas escolhas (muitas delas inconscientes). O único destino inelutável é a morte.
É por isso que o coro diz a Creonte que ele não pode fugir para o futuro e que tem que arcar com o que o destino (a psicanálise diria, com o inconsciente) lhe reserva! Disso nenhum de nós pode fugir. Só que esta é uma máxima délfica difícil de ser acessada e colocada em prática porque se conhecer é trágico, embora não se conhecer seja catastrófico.
Então, a ideia de Freud e de Lacan (lembro que Freud não ampliou sua psicanálise a esta dimensão ética do humano) é a de que todos nós devemos, como fez Antígona, nos responsabilizar pelo que desejamos e arcarmos com as consequências disso. Saibamos disso ou não. Foi assim também com Creonte, embora ele tenha tido que sofrer mais para compreender isso.
Desta forma, quando uma pessoa procura análise, mais do que ser informada sobre si mesma, sobre seus sintomas, ela deverá poder tomar contato com esta ética trágica da vida, devidamente representada pela função do analista – a de que se conhecer é doloroso, mas a de que não se conhecer é mais!
Não há como escaparmos disso. Por isso, trata-se de uma ética trágica. Não se trata de uma ética voltada para o bem comum (como a filosofia discute a ética), mas uma ética profundamente arraigada no humano e nas leis inexoráveis da vida!
Obviamente há muito mais a ser dito e de forma alguma pretendi esgotar esta discussão profunda e complexa que o contato com a peça pode nos proporcionar.
Meu intuito com este texto foi o de estimular o leitor para conhecer um pouco melhor deste legado cultural incrível que nos foi deixado pelos gregos!
Referências bibliográficas
Lacan, J. (1959-60). O seminário livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
Lacan, J. (1974). A terceira. In: Cadernos Lacan. Vol. II, 2002.
Trachtenberg, R. Cesuras e des-cesuras: fronteiras da (na) complexidade. In Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 47, no. 2, 2013. P. 55-66.
Muito bom! Adorei!
Muito bom, tou lendo tudo do blog!