Aspectos da psicologia feminina e violência contra a mulher

Uma mulher não passará pela vida sem experimentar algumas vezes o desprezo e o ódio de um homem por ela.

As negras, pobres e não letradas dos grandes centros urbanos tenderão a senti-los cedo, rejeitadas triplamente por sua cor, seu sexo e sua condição social.

Já suas irmãs, brancas e letradas da classe média, com alguma sorte, irão experimentá-los mais tarde tentando se desvencilhar de uma relação ruim ou sendo exploradas pelos seus maridos conservadores em triplas jornadas.

Em comum, ambas terão a incapacidade de confrontarem, sozinhas, um sistema cruel que se serve das características de sua psicologia para perpetuar tal submissão.

E não parece bastar o discurso de acesso à educação para o combate desta pandemia, muito mais mortal para milhões de mulheres que qualquer vírus.

Será então propósito deste artigo fazer uma incursão sobre este tema procurando mostrar como o modo negativo com que a cultura se apropria dos traços femininos coloca a mulher em situações (quase) impossíveis de serem desfeitas por ela sozinha.

Apanho por minha culpa

É sabido que as mulheres tendem a racionalizar os abusos e violências que sofrem, mesmo entre as mais instruídas.

Por exemplo, mulheres podem obrigarem-se a fazer sexo sem prazer argumentando tratar-se de seu dever conjugal, sob o risco de perderem os maridos à outras. Ensinamento que normalmente veio de outra mulher. Com frequência sua mãe ou avó. Daí o marido bruto, violento, impaciente e adúltero ser sua culpa.

Indaga-se o que sustenta, em termos inconscientes, a persistente transmissão de tais papeis de gênero denegridores pelas próprias mulheres, sendo elas mesmas suas maiores vítimas.

Algo que pode ter a ver com o percurso de sexuação da mulher, muito mais exaustivo e complexo do que o do homem. E que cultura parece ter enorme dificuldade em acolher.

Remorso e culpa

Um dos efeitos colaterais dele será o psiquismo feminino ser mais sujeito aos sentimentos de remorso e culpa. O que pode explicar a maior dificuldade da mulher em ser direta e objetiva.

O subjetivismo e a permanente desconfiança de suas próprias intenções, pelo maior contato dela com suas tendências inconscientes, tem pelo menos duas consequências diretas.

Primeiro, suas ações tenderão mais ao bem-estar alheio do que a seu próprio e, segundo, tenderão mais a confiar que desconfiar dos outros. Computa-se aqui ainda o fator instinto maternal na consolidação de tais características.

Decorre que tais traços femininos serão utilizados com má-fé pelos homens para que a mulher seja mantida submissa, perpetuando esta relação de poder tão antiga quanto a própria civilização. É a mulher que chora na discussão conjugal reforçando a visão pueril e manipulável que o homem têm dela. Quando, na verdade, seu choro não é “fraqueza” mas comportamento que serve à instigação, no macho, de seu instinto de proteção. Sendo o mesmo motivo pelo qual bebês biologicamente choram.

Gosto por limpeza e exploração doméstica

Outro efeito do longo de trabalho de sexuação na mulher será seu maior gosto maior por limpeza, ordem e organização, graças à sublimação de suas tendências anais. Outro aspecto é que o interior da casa, no inconsciente feminino, representa seu próprio corpo.

Decorre que tal traço feminino pode ser usado contra a mulher para escravizá-la e fixá-la no lar. Culturalmente visto como lugar onde não se trabalha e não se produz nada de valor.

Sociedades classistas

E isso será tão mais forte quanto mais classista for a sociedade em questão, como é o caso da sociedade brasileira.

Assim, numa sociedade escravocrata como a nossa em que o trabalho braçal é considerado inferior ao trabalho pensante e de mando, a mulher trabalhadora do lar estará equiparada ao escravo, ou seja, a alguém sem nenhum prestígio porque nem mesmo considerada uma pessoa humana.

Este pensamento entranhado na cultura brasileira faz com que o trabalho doméstico seja completamente desprezado por homens e mulheres, restando àquelas que são as mais submetidas e exploradas realizá-lo, tais como, babás e empregadas domésticas.

Certo dia jantava na casa de um homem classista e ao ajudar sua esposa a retirar os pratos da mesa ele me indagou, impávido: você é psicanalista ou faxineira?

Assim, eu e a esposa deste homem, mulheres letradas e “emancipadas”, só conseguimos nos livrar da escravidão doméstica escravizando nossas empregadas, ou seja, outras mulheres.

Exemplo de como culturas como a nossa, em que a discriminação de classe se soma à de gênero, impedem a mulher de ser reconhecida naquilo que a sua psicologia a preparou para gostar de fazer, por exemplo, cuidar de sua casa e família.

Desse modo a jovem será estimulada a não gostar de cuidar de casa e de crianças e, caso goste, a nunca poder assumi-lo, sob o risco de ser tachada de acomodada e sem ambição, inclusive pelas próprias mulheres. Impasse cultural que ela não poderá resolver sozinha.

Diante disso, terá dois destinos a seguir: ou se fixará no lar, sentindo-se desprestigiada e desvalorizada pelos outros e, frequentemente, por si mesma. Ou recalcará seus traços femininos tornando-se um simulacro de homem. Ambas posições insustentáveis no longo prazo.

Profecias auto realizadoras

A confiança extrema que dá às posições alheias, o que a faz por vezes parecer ingênua, torna a menina, e depois a mulher, extremamente vulnerável às expectativas dos Outros sobre ela. Expectativas carregadas de preconceitos de gênero, como se viu no caso de ser obrigação da mulher satisfazer o marido, por exemplo.

Tais preconceitos de gênero, transmitidos à mulher desde pequena, tornar-se-ão profecias auto realizadoras. Assim, seu pai poderá julgar inconscientemente que mulheres são incompetentes no trabalho fora de casa ou que dirigem mal.

Então, sua filha, no futuro, sentir-se-á uma fraude no trabalho ou nunca passará no exame de direção, sentindo-se incapaz disso.

Donde se conclui que as expectativa parentais sobre os filhos tem caráter de profecia, tamanha a força do desejo inconsciente dos primeiros sobre os segundos.

Saída para desalienação

Perceber que o “amor” que impõe restrições à realização da mulher, não merece este nome. E que os que não fazem nada por seu bem, na verdade, querem-te mal, serão os caminhos da desalienação. Processo doloroso e extremamente solitário.

Onde usar da agressividade para se proteger da violência alheia não é opção e sim necessidade. Visão antagônica ao cristão piedoso que “ama” os seus algozes, tão criticada por Nietzsche.

Daí ser a força nietzschiana que repudia a submissão e ensina a se proteger da violência do mundo, que a mulher precisará aprender

Mas isso por si só não bastará para que ela possa se defender das situações degradantes em que é colocada.

Superioridade da força física do homem

E o motivo é que a persistência da dominação do homem sobre a mulher encontra razão de ser na superioridade da força física de um sobre o outro.

Um homem covarde sempre saberá aterrorizar uma mulher com gritos e com violência; com constrangimento e com ardil, pois ele sempre saberá ser ela mais fraca que ele.

Diante disso, é ingênuo considerar que uma mulher pode se defender de um homem usando tão somente sua inteligência e sua astúcia.

Quando uma pessoa tem poder (simbólico, financeiro, etc.) e força física ao mesmo tempo, o lado mais fraco da relação sempre correrá perigo.

Para reparar esta injustiça fundamental da natureza, a civilização criou a Lei, que deve operar para proteger o subjugado de seu algoz.

E como o homem nunca abdicará de seu irrefreável de poder sobre o mais fraco, nunca poderemos prescindir da Lei e do Estado para reparar os danos, simbólicos e concretos, que o abuso de poder de um homem pode provocar na vida da mulher.

Caberá, portanto, a cada mulher e a cada ser humano injustiçado fazer operar a Lei a seu favor repudiando todo tipo de tirania, seja ela de gênero, de raça ou de classe social.

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