O filme“Bird Box” é um recurso simbólico interessante e que pode nos ajudar a compreender como, no âmago de uma experiência traumática, pode se dar a elaboração do que em psicanálise chamamos impulso de morte, a partir da personagem Malorie.
Tomando-a como modelo, ele também nos provoca a pensar que características de personalidade são favoráveis à sobrevivência na vida e quais não são.
Para dar visibilidade ao desejo de se fazer mal, que em psicanálise corresponde à atuação do instinto de morte na mente, o filme leva os humanos a serem misteriosamente dominados por uma força sinistra e que ninguém sabe de onde veio.
Encarnado por esta força, a pessoa enfeitiçada sente uma atração irresistível pela morte: seu olhar fica petrificado e perdido e ela manifesta verbalmente estar vendo algo maravilhoso que beira a perfeição. Tal estado, parecido com um transe hipnótico,logo a leva ao ato que dará fim à sua existência, ou seja, ao suicídio. Outro elemento é que tal estado é contagioso, sendo o contágio feito por contato visual, o que faz com que as pessoas não contaminadas tenham que vendar os olhos.
A ideia está longe de ser nova e pode ser facilmente remetida ao êxtase religioso ou ao transe hipnótico que, como sabemos, é atingido pelo “enfeitiçamento dos olhos”, que pode ser atingido através de um objeto de movimento pendular ao qual o doente olha fixamente ou simplesmente pela fixação no olhar do hipnotizador.
Sabemos o quanto o ser humano anseia perder-se no outro, anseio que engendra os movimentos de massa em que as pressões inelutáveis do Eu podem encontrar trégua no poder atraente, irresistível e despersonalizado da multidão.
Nesse sentido, a massa pode liberar desejos que individualmente uma pessoa é forçada a reprimir, e dentre eles,sabemos que está o desejo suicida (e homicida, que é só o outro lado da moeda).
Só para nos lembrarmos de que isso não é ficção, citemos só um caso, dentre inúmeros que provam a tese freudiana de que, em massa, a repressão é suspensa e o desejo de morte, dentre outros,pode se realizar sem o peso inexorável da culpa.
Em 18 de novembro de 1979, 918 pessoas se mataram bebendo veneno misturado ao ponche sob a ordem do líder religioso Jim Jones, pastor e fundador de uma seita pentecostal de orientação socialista.
Assim, os inúmeros exemplos reais de suicídio (e homicídio) coletivos nos leva a pensar que o desejo de dar cabo da própria vida existe dentro de cada um de nós, mas que não é colocado em prática, e menos ainda tornado consciente, porque esta sob o forte cabresto da repressão.
É por isso, por exemplo, que jornalistas são ensinados a não utilizar a palavra suicídio num noticiário de TV e que médicos psiquiatras que lidam cotidianamente com suicidas tendem a sofrer uma pressão interna severa quando um de seus pacientes se mata.
O desejo de morte colocado em prática por alguém “acorda” o nosso próprio desejo de morte, impulso que Freud descreveu como algo sinistro, que age dentro de nós sorrateiramente e que temum poder de atração irresistível naqueles que estão sob o seu julgo.
Outro motivo que leva o potencial suicida a querer contaminar os outros com o seu desejo é porque, conseguindo destruir a esperança naqueles que continuam vivos, ele não precisa mais sentir culpa ou, o que é pior, fracassado por estar desistindo da vida.
Se todos desistem de viver, ou, se todos perdem a esperança na vida, eu não me preciso mais me esforçar pra continuar vivendo. E todos nós sabemos que continuar vivendo exige de cada um de nós doses cavalares de coragem e de obstinação digna de um herói do porte de Aquiles.
Enlouquecer, num certo sentido, é desresponsabilizar-se de si mesmo e não há nada mais irritante do que vermos alguém que aceita com alegria cuidar da própria vida quando eu próprio odeio ter de fazer isso.
Isso explicaria no filme, a meu ver,o comportamento dos loucos que sadicamente forçavam as pessoas não contaminadas a que abrissem os olhos e se deixassem vencer irresistivelmente pelo desejo de morte.
Talvez em um filme tipo “Blockbuster”como este, ou seja, dirigido à grande massa, só seja possível abordar esta temática tão dolorosa que é a presença do desejo de aniquilação da vida em nós pela via do sobrenatural.
É assim também que povos primitivos, crianças e neuróticos tendem a lidar com seus maus impulsos: negando-os em si e projetando-os no mundo externo e designando-os a deuses, espíritos ou seres sobrenaturais.
Freud tinha esperança de que, com o advento da era científica, o homem seria capaz de simbolizar seu universo psíquico através da racionalidade, da lógica e do bom senso. Visão de certo modo otimista que desconsiderava até certo ponto o quanto muitos de nós continuarão necessitando acreditar em ilusões e em miragens por vezes muito mais agradáveis e palatáveis do que as complicações da realidade.
Estas pessoas, que Freud considerou ser a maioria da humanidade, tendem a serem personalidades ingênuas, pouco preparadas para lidar de forma racional com o mal e com os conflitos inerentes à realidade; personalidade amável e tola que no filme é representada por Olympia.
Esta mulher explica que sua fraqueza de caráter se deve ao fato de ter sido muito mimada pelo marido, o que parece abrir um caminho interessante para compreendermos a relação entre superproteção e fraqueza de caráter. Sabendo-se pouco preparada para sobreviver, ela pede a Malorie, grávida como ela, que cuide de seu filho caso ela venha morrer.
Pessoas como Olympia tendem a negar a presença do mal e do conflito nas escolhas humanas e por isso mesmo frequentemente são vítimas de sua própria pobreza espiritual. Quantas pessoas perigosamente ingênuas não se queixam de terem sido enganadas quando, na verdade, elas mesmas fizeram de tudo para não enxergar a realidade?
Lembremos que no filme foi Olympia que prontamente abriu a porta para o homem que viria a matar todos na casa,erro que foi cometido por seu excesso de piedade e de confiança em pessoas estranhas.
Isso possibilita uma reflexão interessante e muito atual, que pode se estender a vários problemas de nossa sociedade (pense,por exemplo, no problema dos imigrantes) e que tendem a ser tratadas de forma polarizada e demasiadamente simplista: de um lado, um discurso humanitário (tipo Olympia) que diz que se deve abrir a porta a todos, de outro, um discurso conservador e desconfiado que tende a julgar bons os que “são dos nossos” e maus todos os que estão do lado de fora.
Qual dois corresponde à realidade?
Provavelmente nenhum, haja vista que a realidade é sempre mais complexa, e o buraco é sempre mais embaixo do que parece ser numa primeira olhada.
De qualquer modo, o discurso humanitário (“amamos a todos igualmente, sem distinção”) representado por Olympia carece de substância e é fraco em termos de sustentação.
É isso o que vemos ser questionado pelo autor quando Malorie se vê tentada a sacrificar a filha de Olympia em detrimento do seu filho biológico. No final, ela não sacrifica ninguém, mas, não sejamos ingênuos, o dilema é deveras difícil e atire a primeira pedra quem não pensaria dez vezes sobre o assunto!
Já ouvi este dilema, em seu aspecto real e cru, na situação em que a pessoa se viu dividida entre dar abrigo a um preso político ou judeu fugindo do nazismo e proteger sua própria família, que certamente seria colocada em risco com a presença da pessoa perseguida em sua própria casa.
Assim, o contraponto da personalidade ingênua de Olympia, no filme, é representado por Malorie, uma jovem mulher obstinada, corajosa e que descobriu muito precocemente que a vida não é “rosinha flores” (Guimarães Rosa) e que por isso mesmo sabe colocar os valores nos lugares certos.
Filha de pais desajustados, Malorie é pintora e capta em suas telas quanto desencontro e distanciamento pode existir nas relações humanas. Daí ela não se deixar capturar facilmente por nenhuma ilusão, nem mesmo a doce e romântica ilusão do dito “instinto materno”.
Excessivamente endurecida pela vida, Malorie acredita que o amor enfraquece; visão acertada,embora realista e dura demais. Ao fazer Malorie ser a única capaz de sobreviver ao mal, o artista parece nos contar que só uma personalidade não iludida é capaz de sustentar a dureza da vida sem romantizações terá alguma chance de sobrevivência, visão com a qual a psicanálise parece tender a concordar.
Outro elemento que parece imprescindível à sobrevivência de Malorie diz respeito ao modo realista como ela encara a solidão. Ela sabe que cada um de nós é só e por isso encara a solidão (ou solitude) não como uma tragédia, mas como fazendo parte da nossa condição humana.
Esta força de caráter fica expressa,por exemplo, na cena em que o namorado Tom morre para protegê-la, bem como às crianças, tragédia diante da qual ela tem duas formas de confrontar: ou permanecer chorando (e provavelmente morrer), ou se encher de coragem para seguir sozinha, que é o que ela faz.
Acontece também que Malorie está grávida de um homem que, somos levados a pensar, não quis assumir a paternidade. E ela teme não ser capaz de amar a sua criança. Mas Malorie não é uma mulher má; ao contrário, sua bondade realista é muito mais substanciosa do que uma bondade mole e flácida, que é tudo o que um bebê não precisa de sua mãe.
Ao mesmo tempo em que é forte como um touro, Malorie também é frágil e teme se apegar às crianças (seu filho e a filha de Olympia, que ela cuida depois que a mãe morre) , vindo a sofrer mais uma vez. Isso costuma acontecer com pessoas que já foram muito machucadas pela vida e que, como forma de defesa, endurecem por dentro temendo que o amor as deixe vulneráveis mais uma vez.
Para Malorie, assumir as crianças como seus filhos significa ter que enfrentar o medo de repetir com eles a história trágica de abandono sofrida por ela própria na infância, algo que uma pessoa inteligente como ela sabe ser muito difícil evitar.
Freud explicava esta tendência à repetição do passado traumático como um aspecto inerente do impulso a quem falta maleabilidade e flexibidade trazidas pelas novas experiências. De certo modo, podemos dizer que o impulso é estúpido: se aprendeu de um jeito, tenderá a fazer sempre do mesmo jeito.
É por isso que é tão comum vermos pessoas que sofreram na infância com a inadequação de seus pais fazerem exatamente o mesmo de que se queixam com seus próprios filhos, criando um ciclo ininterrupto de tragédia e destruição transgeracional.
De certo modo Malorie não confiava em si mesma e em sua capacidade de ser uma mãe diferente daquela que tivera no passado e era em parte por isso que rejeitava a maternidade.
Além disso, aprendeu por suas próprias experiências precoces a não confiar nos vínculos afetivos que, ao que tudo indica, para ela, sempre foram mais frustrantes do que satisfatórios. Em seu universo psíquico, o mundo é constituído de seres humanos tolos, superficiais e egoístas, o que é também verdade, embora não seja toda a verdade.
O que Malorie irá aprender ao longo da trama é que não existem só pessoas más e decepcionantes no mundo. Existem também pessoas como Tom, capazes de dar sua vida às pessoas que ama, e existem crianças doces (filha de Olympia) e também corajosas e íntegras (seu filho).
Afinal, se o mundo deve ser encarado de forma realista, ele também precisa ser temperado como sal dos afetos, para que a vida não fique intragável e dura demais de ser vivida.
Assim, moralizando Malorie podemos dizer que ela tinha “dificuldade em se relacionar”. Ou, o que eu penso ser mais rico, podemos dizer que ela enxergava com demasiada lucidez que se relacionar como outro é deveras difícil, e por enxergar tanto não sabia muito bem o que fazer com tanta realidade. Penso que isso corresponde mais à verdade dos fatos.
Outra forma de compreender a instigante personalidade de Malorie é recorrendo à bissexualidade psíquica, conceito muito caro à psicanálise.
Em Malorie, predominavam os elementos masculinos da personalidade enquanto os femininos estavam em estado de suspensão.
Os elementos masculinos correspondem à função de sobrevivência, de ação rápida frente ao perigo, de força e do predomínio da razão sobre a emoção, ao passo que os femininos correspondem à languidez, à passividade e ao uso da emoção e dos afetos como forma predominante de comunicação (muito presentes em Olympia).
A lição final do filme, quando ela e as crianças estão perdidas na floresta, parece ser que uma personalidade de êxito é aquela que consegue compor em si elementos masculinos (que Malorie já tinha) e elementos femininos (que ela desenvolveu através das crianças), numa espécie de bom casamento psíquico.
Assim, na floresta densa, ela só consegue encontra-los quando assume a si mesma o quanto os amava, e então pode finalmente localizá-los dentro de si como seus filhos.
Depois disso, finalmente conseguem chegar ao “novo Éden”, a partir do qual a humanidade terá que recomeçar mais uma vez.
A esperança, então, finalmente venceu o medo!
Lá, os pássaros, símbolos da esperança e da renovação, são soltos e ela finalmente pode batizar os filhos com um nome, o que significa que agora ela havia conseguido finalmente adotá-los psiquicamente, pouco importando se se tratava de uma filiação biológica ou não, realizando com isso a modalidade de amor mais nobre e sofisticada que um ser humano pode sentir: o amor que ultrapassa as barreiras narcísicas de pertencimento.
Aqui a mensagem do filme parece ser precisa.
A vida humana em comunidade só é viável se pudermos, como a corajosa Malorie, integrar dentro de nós elementos do viver aparentemente antagônicos e que a psicanálise vincula à bissexualidade psíquica, que são: coragem e doçura; firmeza e acolhimento; verdade e piedade; objetividade para se viver o amor e o ódio.
Pois, coragem sem amor é frieza; mas amor sem coragem é mentira. Verdade sem doçura é crueldade, mas doçura sem verdade é hipocrisia.
E mais, se pudermos transcender os demarcadores mais óbvios em termos de eleição de nossos objetos de amor, que costumam ser bastante narcísicos e, portanto, egoístas: minha cor de pele, meu sangue, minha classe social, minha família, etc.
Cada criança que nasce, cada ser humano que respira sobre este planeta, precisa encontrar estes dois elementos conjugados no outro com o qual ele se relaciona, sob o risco, de não os encontrando, perder a fé na humanidade.
E talvez estejamos meio perdidos nesta nossa tão famigerada e sofrida conjugação bissexual.
A moda cool da maternidade, com a indústria marqueteira que dela se alimenta, vendem que a maternidade é doce, limpa e fácil, quando a realidade é o oposto disso.
A algo de selvagem na aprendizagem que uma criança deve ser capaz de fazer para poder sobreviver sozinha depois;algo que Malorie sabe e busca transmitir às crianças quando fala duramente com elas de que o que vão fazer é muito perigoso (iam descer o rio) e que precisam ser responsáveis e atentas, caso contrário irão morrer.
De outro lado, a nomeação simbólica do sujeito, fruto de um sentimento de adoção afetiva (daí que não importa ser filho biológico ou não, como Malorie mostrou) também será crucial para a sobrevivência deste, dando-lhe um lugar único no mundo, algo que vem sendo difícil de se efetivar pela predominância ainda muito grande da valorização dos vínculos consanguíneos, herança de uma aquisição moderna não muito tardia da qual não nos desprendemos sem dificuldade.
Não podemos saber ao certo qual era a intenção do autor com sua obra, mas podemos conjecturar que, através dela, ele faça algum tipo de crítica às carências simbólicas da sociedade moderna em oferecer suportes significantes para a dureza da vida, talvez porque estejamos ainda muito embevecidos de um iluminismo esperançoso que facilmente se perverte hoje em dia em um discurso de autoajuda do tipo “pense positivo que tudo vai dar certo”! Ora, não há nada mais ingênuo e tétrico do que isso. Se seguirmos assim, precisaremos mesmo de outro apocalipse pra começar de novo.
De outro lado, um discurso conservador e nostálgico ainda insiste em fazer da família consanguínea e de algumas outras instituições ultrapassadas símbolos entronizados da tradição e dos bons costumes, enquanto basta alguns anos como psicanalista para saber que esta família entrópica produziu sujeitos neuróticos e profundamente infelizes.
Nesse sentido, e isso talvez seja outra mensagem do filme, devamos satisfazer nosso anseio de comunidade em modelos familiares mais abertos, flexíveis e arejados – uma espécie de grande família fraterna constituída por pessoas com objetivos afins, que é o que vemos se formar na casa dos sobreviventes (primeira parte do filme), e no “novo Éden de cegos” (última parte do filme).
Nesta grande família haverá conflitos como em qualquer outra, mas sem mais o peso sufocante da idealização; nela também, nenhum valor moral estará dado a priori; tudo estará para ser construído, destruído e reconstruído a cada instante seguindo o mesmo movimento dialético que compõe o universo; e não haverá lamento porque nada é fixo e permanente porque se saberá que a permanência e a fixidez logo podem se converter em tédio e prisão (isso a história já mostrou).
Nesta grande família, que poderá se recompor e se reconfigurar quantas vezes se fizer necessário, cada membro será uma entidade única (como um átomo), que poderá existir, simultaneamente, tanto sozinho quanto combinado quimicamente com outros elementos. Quem sabe desta grande família fraterna surgirão rebentos mais interessantes, mais fortes,menos mimados? Quem sabe esta família seja o modelo ultramoderno que nos aguarda daqui há cem anos ou duzentos anos?
Pena que não estarei viva para ver!