Acabo de ler duas das principais obras-primas escritas pelo escritor russo Fiódor Dostoiévski – “Crime e castigo” e “Os irmãos Karamazov” – e estou absolutamente fascinada com a sua capacidade de mergulhar fundo em questões humanas universais.
Apesar de Freud ter enfatizado em suas análises sobre o escritor russo a questão do parricídio, eu gostaria de lançar luz sobre alguns outros aspectos humanos que, a meu ver, estão muito bem delineados em suas obras.
Mas, antes de elencar algumas destas questões, apresentarei uma breve síntese das obras citadas, embora sugira que meus leitores não se privem do imenso prazer de se deleitar com a leitura integral das obras.
Ressalto ainda que neste texto enfocarei a obra “Crime e castigo” e em texto posterior falarei de “Os Irmãos Karamazov”.
“Crime e castigo” (título original: “Culpa e expiação”) foi originalmente publicado em 1866 e escrito por ele logo após sua longa estadia em uma prisão na Sibéria, algo que lhe causou uma profunda impressão. Neste contato com homens considerados perigosos e “fora da lei”, Dostoiévski pôde perceber que, ao contrário do que considerava o senso-comum, havia em muito deles um profundo sentimento de culpa pelos atos infracionais cometidos. Diante disso, o perspicaz autor conclui: estes homens não são nem um pouco diferente dos outros seres humanos que estão livres, exceto pelo fato de que, neste caso, concretizaram o ato delituoso, dando vazão a desejos considerados perigosos ao bom convívio social. Com isso, o escritor relativiza e problematiza a diferença entre o homem bom e o mau. Fazendo um paralelo com o pensamento psicanalítico, podemos fazer coro com Dostoiévski e nos perguntar: quem de nós já não realizou o matricídio e o parricídio, nas regiões sombrias do inconsciente? Conclusão: para a psicanálise e para Dostoiévski somos todos culpados pelos nossos desejos mais secretos e sombrios.
Esta percepção profunda sobre a conduta humana possibilitou ao autor criar obras em que a personalidade de seus personagens é carregada de alta densidade e complexidade psicológica, que se diferenciam de posições moralizantes com relação às condutas humanas, mas também de uma visão romântica e empobrecida do humano.
Mas, vamos à primeira obra “Crime e Castigo”. A história é basicamente a seguinte: Raskólnikov, personagem principal da trama, um jovem por volta dos vinte anos, quase miserável e dotado de um alto sentimento de justiça social, decide matar uma velha agiota que vivia de explorar os pobres. Em seus questionamentos sobre a gravidade ou não de seu crime, o jovem Raskólnikov questiona-se sobre qual o valor que há na vida de uma usurária como aquela, que ele chamava de “barata”. Julgando-se menos dominado pelas culpas da consciência que outros seres humanos, o herói trágico da trama decide matar a velha e, por uma circunstância fortuita, acaba assassinando também a sua irmã, que chega no exato momento do crime. Depois de cometido o ato, Raskólnikov não suporta o peso de sua consciência e sucumbe à necessidade de expiação pelo crime cometido. Ao final da obra, ele se entrega à polícia assumindo a responsabilidade pelas duas mortes. A expiação é conseguida ao final pela via religiosa e pela via do amor devotado de sua fiel Sônia (prostituta miserável dotada de alta capacidade empática e compreensiva acerca dos dramas humanos).
Ao longo da trama ficamos profundamente identificados com os dramas de consciência do personagem principal que, julgando-se mais frio do que realmente era, descobre-se humano e sujeito aos mesmos dramas de consciência do que qualquer outro pobre mortal. Enxergarmos nele também algo muito bem descrito por Freud – o sentimento inconsciente de culpa, que tão frequentemente acomete os neuróticos. Neste caso, a culpa intolerável (seja pelo ato cometido ou pelo ato desejado: do ponto de vista inconsciente isso é a mesma coisa) precisa ser expiada, situação que leva o sujeito a buscar de forma compulsiva a punição e o castigo. Freud, em um interessante texto chamado “Os criminosos por sentimento de culpa” (Freud, 1916), chegou a considerar que muitos ladrões e criminosos deixam inúmeras pistas de seus crimes para serem pegos. Com isso, aprendemos algo muito valioso sobre o humano: que grande parte dos membros da nossa espécie (pelo menos aqueles que atingiram algum nível de consciência moral) necessita expiar suas culpas inconscientes.
Esta questão é muito emblemática e pode ser vista cotidianamente: uma pessoa, depois de conseguir algo muito desejado (e proibido pelo inconsciente), mete-se em uma enrascada grande e perde tudo o que conquistou. Ou adoece ou bate o carro ou se esquece do compromisso importante. Enfim, as situações podem ser inúmeras, mas o que há por trás é o mesmo mecanismo: necessidade de ser punido pelo desejo realizado.
Freud tinha grande apreço por esta discussão, que em última instância, questiona a própria ideia de destino. Para a psicanálise, o homem busca realizar o que há no seu inconsciente. A isso se dá o nome de destino: força inexorável, quase demoníaca, que faz o homem ir em direção àquilo que ele conscientemente mais evita e foge.
Mas, no caso do nosso personagem, qual foi o desejo proibido realizado por ele?
Bem, ele era extremamente pobre, miserável mesmo. Além disso, estava tendo que engolir o fato de ver sua querida irmã se casando com um homem por dinheiro. Há claramente uma questão edipiana aqui, pois ao longo da obra vemos ser evidente a profunda paixão proibida que Raskólnikov nutria por ela.
Matando a velha agiota Raskólnikov satisfazia vários de seus desejos ao mesmo tempo: tinha dinheiro para evitar o casamento da irmã sendo que, do ponto de vista inconsciente, agora ele próprio teria dinheiro para comprar o seu dote e se casar com ela. Também, num nível mais superficial, podia com isso sair de sua situação de penúria e miséria, alcançando o status social tão almejado por ele. Pois, apesar de Raskólnikov não valorizar bens materiais, luxo e riqueza (vivia rasgado e maltrapilho) valorizava muito o desenvolvimento intelectual e buscava reconhecimento social a partir daí.
Mas, o sentimento de culpa era tão grande que Raskólnikov nem sequer conseguiu usufruir do dinheiro da velha. Durante toda a trama, o deixou escondido debaixo de uma pedra. Mais uma lição sobre as profundezas da alma humana: aprendemos com Raskólnikov que quando uma ação humana é motivada por um desejo inconsciente proibido, não podemos gozar da conquista advinda daí. Se por exemplo, a conquista da tão sonhada casa significa do ponto de vista inconsciente triunfo e tripudiação sobre o casal de pais internos (sobretudo o pai), a pessoa não conseguirá gozar desta casa. Por isso um ser humano não pode menosprezar e se dar ao luxo de não conhecer suas motivações inconscientes. Porque, de um jeito ou de outro está condenado a se encontrar consigo mesmo: pela via do amor ou pela via da dor.
O erro do nosso tão humano personagem foi ter se julgado menos humano do que realmente era, algo que vem a apreender no final do drama, pela via da do amor ou pela via da dor.
Interessante destacar como Raskólnikov só pôde aceitar o amor da prostituta depois de ter expiado sua culpa. É como se até então houvesse uma espécie de pensamento latente que lhe dizia não ser ele merecedor de amor, nem mesmo do amor de uma prostituta. Por isso ele andava maltrapilho e causava piedade nas pessoas. Neste sentido, também podemos hipotetizar que a figura de Sônia (a prostituta) representa o extremo oposto da figura de sua irmã. Ou seja, Raskólnikov só tinha autorização interna para se relacionar com alguém que fosse muito diferente de sua irmã, visando evitar o risco da irrupção do desejo inconsciente incestuoso.
De qualquer maneira, ao longo do drama vamos ficando penalizados com a situação interna caótica e confusa vivida por Raskólnikov que, no fundo, poderia ser qualquer um de nós, neuróticos ou “normóticos”, que sofrem, expiam e se punem pelos desejos que brotam do inconsciente, para os quais muitas vezes, de forma arrogante e onipotente, insistimos em virar as costas. Foi isso que fez Raskólnikov no início do drama: ele queria ser como Napoleão. Matar sem sentir culpa. Julgava-se superior aos outros seres humanos. Mas, descobriu pela via da dor que não era. E é isso que faz com que fiquemos tão identificados com seus dramas pessoais. O fato de ele ser tão humano. Tão confuso. Tão dominado pelos potentes jogos de forças inconscientes que lhe eram absolutamente desconhecidos.
Valeria a pena chamarmos a atenção para outro elemento que Dostoiévskyi apresenta ao final de sua obra. O herói trágico Raskólnikov só encontra alento depois de se encontrar com Deus. Dito em outros termos: necessitou ser perdoado de seus desejos incestuosos e proibidos por Deus-pai.
E eu pergunto: haveria outra saída para nós humanos que não a via da religião? E mais: qual seria a diferença entre a saída proposta pela religião e pela psicanálise?
Ora, apesar de alguns transformarem a psicanálise em religião, o que é uma pena, eu penso que são saídas muito diferentes para os mesmos dilemas humanos.
O que faz a religião, o padre? Diz para o ego infantil: “Eu te perdoo meu filho. Não se consuma em culpas, você é um homem bom. Faça uma penitência, reze um terço e logo encontrará a paz.”
E o que propõe a psicanálise? O psicanalista, imbuído de ser o suposto sujeito que Sabe Tudo, questiona o homem comiserado que vê diante de si e diz: “Conheça o seu desejo, por mais abominável, abjeto e moralmente inaceitável que você julgue que ele seja. Depois de conhecê-lo, julgue você mesmo o que quer fazer com ele: se realiza-lo ou abrir mão dele, para poder viver com o seu semelhante. A escolha, em última instância, será sua.”
Então, qual é a diferença? A religião trata o homem como uma criança pequena que precisa ser perdoada e redimida. Portanto, não responsabiliza o sujeito pelo seu desejo.
A psicanálise, com sua ética responsável e trágica, convida o sujeito a levar sua capacidade de pensar e de ser livre ao extremo, responsabilizando-o por ser aquilo que é e por desejar aquilo que deseja. Eu acho esta a coisa mais linda que Freud nos deixou como legado! Com isso podemos deixar de sermos crianças miseráveis e carentes em busca de aprovação paterna e assumirmos plenamente a condição adulta, livre e responsável por nós mesmos.
Com isso, ficamos livres da necessidade de termos um pai, um chefe, um Deus, um terapeuta que nos diga o que fazer, pensar ou falar. Nós ficamos sendo absolutamente responsáveis por aquilo que desejamos e somos. Isso é, em última instância, adquirir um posicionamento ético na vida. É o máximo da liberdade, com responsabilidade.
Raskólnikov (ou Dostoiévski) teve dificuldade de dar este passo além. Ambos nos mostram, provavelmente porque captaram intuitivamente, o quão arriscado é ser homem desejante. O quão arriscado é estar realmente vivo.
Só para terminar, acabo de me lembrar de uma entrevista com um dos tradutores de Dostoiévski que acaba de traduzir “Crime e Castigo” do russo direto para o português. Ele disse, surpreso, que Dostoiévski parecia não saber realmente o potencial que tinha dentro de si e que seus livros saiam “meio no atropelo”, quase que acidentalmente.
Pela psicanálise é fácil compreender isso: Dostoiévski não podia se apropriar livremente de seu imenso recurso criativo porque, afinal, este devia lhe trazer grandes doses de culpa. Então, se suas obras geniais saiam no atropelo, meio que acidentalmente, ele não poderia sentir que aqueles recursos eram seus. Talvez os interpretasse como intuição divina ou sei lá o que. De qualquer maneira, ele não podia se apropriar de quem ele era, o que é sempre uma pena porque traz muito sofrimento para o sujeito. De qualquer forma, é curioso fazermos o exercício de imaginar quão mais fundo na alma humana Dostoiévski poderia ter chegado se tivesse conseguido dar este passo além e se livrado de uma vez por todas do pensamento religioso. De qualquer forma, sua coragem por ter se arriscado em zonas tão sombrias e perigosas da mente é algo invejável. Devemos a ele esta capacidade de mergulhar fundo em regiões mentais tenebrosas em que figuras demoníacas, miseráveis e corpulentas incitam o homem a se entregar a seus desejos mais irrefreáveis para depois se afundar nos lamaçais caudalosos da culpa e da expiação.
Em “Irmãos Karamazov” fica ainda mais evidente a corpulência e intensidade destes personagens de Dostoiévski que se entregam de corpo e alma à vida, mesmo que isso lhe custe dor, culpa e necessidade de expiação. Impossível ler Dostoiévski sem deixar de ser inflamado por estas fagulhas pulsantes de vida.
Apenas não concordo com a intenção sexual incestuosa pela irmã.. também já li sobre realmente não ter se arrependido do crime, o desejo de punição difere do arrependimento. E, a maior decepção foi se descobrir um homem comum, não um Napoleão.