Recentemente vivi a interessante experiência de estar em uma partida de futebol, em uma final de campeonato; algo completamente inusitado e novo para mim.
Descreverei minhas sensações, impressões e sentimentos diante da experiência para, em seguida, propor uma análise sobre a função que jogos como futebol e outros esportes competitivos podem ocupar em uma sociedade. Para isso, irei embasar meu pensamento nas contribuições de Freud e da psicanálise no que se refere ao papel da repressão dos impulsos, sobretudo os agressivos, para que um projeto de sociedade seja viável.
Também mostrarei como, em minha perspectiva, ao contrário do que se diz sobre o futebol ser o ópio do povo, destacarei como este tipo de atividade catártica pode ter uma importante função de escoamento de impulsos agressivos, particularmente em sociedades como a brasileira em que a possibilidade de sublimação dos impulsos pela via intelectual é dificultada pela baixa escolaridade de grande parte da população. Isso explicaria, em parte, a imensa paixão que os brasileiros têm pelo futebol. Minha hipótese é a de que este tipo de vivência pode ser fundamental para a economia das pulsões, embora seja verdade também que o limiar entre o escoamento da pulsionalidade e a eclosão das pulsões pela via da ação seja tênue – o que explicaria as constantes brigas violentas que acontecem em estádios.
Mas, antes de irmos à análise, descreverei minhas sensações e impressões vivenciais, que foram vitais para que eu pudesse entrar em contato analiticamente com a situação.
A chegada ao estádio
Logo ao chegar ao estádio percebi uma grande agitação no ar. Estava com o meu marido e obviamente isso me deixou muito mais segura, mas podia captar a imensa carga de pulsionalidade presente ali. Grande parte dos torcedores era do sexo masculino. Vendo aquela multidão de homens e vendo o meu marido me protegendo pensei imediatamente que estávamos entrando “na selva”, ou seja, no mundo da animalidade e do primitivismo. Notem que uso aqui primitivismo não no sentido negativo, mas no sentido de algo que é anterior ao civilizado.
Antes de entrarmos no estádio houve certa demora na abertura dos portões e a sensação de “panela de pressão” era evidente. Homens de todas as idades gritavam, agitavam o portão e esbravejavam contra os policiais. Ameaçavam “arrombar”. Lembrei-me do texto “Totem e tabu” de Freud e da horda primitiva que ameaça matar o pai / policial. Neste instante pude entrar em contato com a experiência real de como a civilidade que nos constitui é apenas uma frágil casca de ovo e como estamos muito mais próximos do primitivismo do que supõe nossa vã filosofia.
Este tipo de consideração é importante, pois, se pudermos apreender do que é feita a nossa natureza primitiva podemos acolher um pouco melhor os fatos humanos e não nos chocar tanto com as constantes rebeliões, brigas violentas e assassinatos que cometem homens e mulheres de todas as sociedades humanas, mas mais particularmente aquelas que como a nossa carecem de possibilidades de sublimação da violência pela via da cultura.
Ou seja, estamos muito mais próximos da selva do que pensamos!
Fica evidente nesta experiência de estádio / selva a presença das duas qualidades de pulsões descritas por Freud: a agressividade e a pulsão sexual. Disso deriva a minha sensação de estar em uma “panela de pressão” prestes a explodir e a captação intuitiva do meu marido de que tinha que me proteger dos rivais. Lembro a vocês que no mundo animal há duas coisas básicas que regem a preservação das espécies: a luta pela sobrevivência pela via da agressividade e a necessidade de acasalamento com o maior número de fêmeas possível. Agressividade e sexo são, portanto, os instintos básicos que regem a nossa existência.
Agressividade contra o “inimigo”
Depois que entramos no estádio houve certo “esfriamento” pulsional, mas só aparentemente. O que aconteceu é que a agressividade agora tinha um alvo mais definido: a torcida adversária. Penso ser esta uma função crucial, embora primitiva, do futebol e de outros jogos e lutas em que a competitividade entre dois times e duas torcidas é ponto central: a possibilidade de voltar a mira da agressividade para o inimigo, para o outro, para a torcida adversária.
Ou seja, até antes de entrarmos no estádio, a agressividade estava difusa e não havia ainda a possibilidade de se canalizar toda a violência contra o time adversário. No máximo ela eclodia contra o policial, mas também podia acontecer entre os membros difusos do grupo. Desde o instante que o jogo teve início, o time “de fora da casa” fora vaiado muitas e muitas vezes, situação que explicita a extrema violência e crueldade dos instintos humanos voltados contra o inimigo. Ressalto que este tipo de dinamismo é algo presente também em guerras contra países e povos considerados “inimigos”.
Apesar de o psicanalista estar habituado a lidar in loco com a força disruptiva da pulsionalidade em seu trabalho cotidiano no consultório, há uma diferença fundamental entre isso que ele faz na clínica e o contato com o primitivismo que estou descrevendo em minha experiência. A diferença fundamental é que na clínica, a dupla analítica trabalha para inserir a pulsionalidade nas tramas dos significados simbólicos, ou melhor, na fala, para que esta não seja simplesmente descarregada e, portanto, se torne inútil para produzir pensamentos.
No caso da vivência do estádio / selva, a situação é bruta, primitiva e carece de qualquer possibilidade representacional na mente daquelas pessoas. Apesar disso, conforme estou argumentando aqui, esta vivência ainda assim me parece ter a importante função de dar algum contorno, ainda que primitivo, a alta carga de destrutividade presente em nós. Neste sentido, acredito que a imersão do psicanalista no “campo” é fundamental para que ele apreenda do que se trata realmente o que dizia Freud.
Isso me fez lembrar uma história que certa vez ouvi do escritor moçambicano Mia Couto. Contava ele em uma conferência que sempre fora contrário à matança de animais selvagens, situação muito comum na África. Mas este discurso um tanto ingênuo só se manteve até o dia em que se viu diante de um imenso leão vociferando para ele e para os nativos com os quais acampava em uma expedição de pesquisa. Neste momento, fala Mia, ele se deu conta de que somos todos bichos em busca da sobrevivência. Neste dia ele também pôde perceber como somos frágeis diante das leis da natureza. Eu acrescentaria: das leis da natureza externa (do leão) e das leis da nossa natureza interna (da nossa pulsionalidade).
Em “Mal-estar na civilização”, talvez um dos textos mais conhecidos de Freud, ele argumenta que nós tivemos que abrir mão dos nossos instintos, pelo menos até certo ponto, para podermos nos organizar em sociedade. Quando falamos de instintos é possível ficarmos com a sensação ingênua (como Mia Couto) de que se trata de coisas um tanto quanto inofensivas. Mas isso não é verdadeiro! E foi isso que pude apreender em minha experiência no campo.
Os instintos, que no humano se transformam em pulsões (representações mentais dos instintos), são intensos e, quando não contidos, são perigosos para o sujeito e para os demais seres humanos já que tendem imediatamente à ação, ou melhor, à descarga. No caso da violência, se ela não encontra representação dentro da mente, o risco é de ela ser evacuada sob a forma de ações contrárias ao próprio sujeito ou ao seu “semelhante”. É necessário um longo, penoso e constante trabalho civilizatório para que estas pulsões sejam contidas dentro da mente. Daí a minha sensação de “panela de pressão”. E foi exatamente sobre a precariedade com que a civilização consegue fazer este trabalho de representação mental dos instintos que Freud tratou neste texto.
Segundo ele, uma das saídas mais interessantes para que as pulsões sejam transformadas é a sublimação, sobretudo pela via do desenvolvimento cultural de uma civilização.
Ora, como fazer isso em um país como o nosso? Em que a grande maioria da população, desde seus primeiros anos de vida, não é estimulada intelectual e culturalmente com boas escolas e com boa educação? Não estou usando aqui “boa educação” no sentido do senso comum que normalmente é atrelado a práticas repressoras. Refiro-me à boa educação como uma prática humana que possibilita que o sujeito em formação possa ser informado com qualidade, clareza e verdade, sobre quem é, sobre sua condição humana e sobre as implicações disso para sua vida. A seguir darei exemplos mais claros do que quero dizer.
Esta tarefa árdua é função dos governantes, dos educadores, dos pais e da sociedade em geral, que deve se ocupar com a formação integral de seus partícipes. Ou seja, um ser humano precisa ser educado por pais e governantes responsáveis e precisa ser auxiliado por estes no delicado e difícil processo de contenção pulsional. A educação, ou melhor, a cultura tem um papel fundamental nisso; algo que os gregos descobriram há mais de vinte e cinco séculos.
Por outro lado, não idealizemos os gregos que também encontravam formas de escoamento de sua agressividade através das guerras contra povos inimigos! Eles foram, inclusive, um dos povos que mais se desenvolveu em termos bélicos!
Mas há uma diferença fundante entre nós e os gregos: eles, representados por seus governantes (chamados tiranos) valorizavam e se dedicavam à formação e educação integral do homem. Platão, por exemplo, considerava que o jovem deveria ser informado desde muito cedo sobre a sua condição humana, pois só assim poderia realizar satisfatoriamente os propósitos da sociedade e vir a ser um sujeito ético e valoroso.
Ou seja, cada povo, cada um a seu modo, necessita encontrar formas de representação mental da violência, intrínseca ao humano. Quando este trabalho de representabilidade não acontece, a violência é evacuada sob diversas formas. Neste caso, não é possível se fazer nada com esta violência porque, uma vez evacuada, não serve aos propósitos de aprendizagem e de transformações mentais.
De qualquer forma, é meta da sociedade, de cada povo e de cada comunidade humana encontrar formas de se lidar com este incômodo fato de sermos animais!
Futebol: ópio do povo?
No Brasil – contexto que estou discutindo aqui – talvez pelo caráter extremamente lúdico de seu povo, pela nossa história de colonização (feita para fins de exploração) e pela carência educacional da grande maioria da população, o futebol tenha uma função muito importante. Mas, também é verdade que em países desenvolvidos jogos considerados violentos também são fortemente estimados pelas pessoas. Por isso é arriscado dizer que o gosto pelo futebol se dá porque nos falte cultura ou algo que o valha! Pode ser que sim, mas eu tenho dúvidas de que um povo como o nosso se deleitasse mais em ouvir música clássica (modelo erudito importado da Europa) do que assistindo a uma eletrizante partida de futebol. Por isso acho arriscado dizermos que o futebol é o ópio do povo.
Em termos psicanalíticos, digamos que o futebol é uma das formas possíveis de descarga pulsional. Mas, há milhares de outras: guerras, disputas entre grupos, bairros ou países rivais, bulling, etc.
Muito se refletiu sobre como foi possível que o povo alemão, tão erudito, tenha se sujeitado a ser protagonista da violência nazista. Ora, quem diz isso não conhece a natureza humana! Não sabe que independente da erudição de um povo (casca civilizatória) somos animais!
E eu não digo animais no sentido pejorativo. Digo no sentido realista da coisa, de que descendemos diretamente dos nossos parentes não racionais.
Educação para a mente e para a alma
Se isso pudesse ser ensinado com seriedade nas escolas, talvez em uma disciplina que poderia se chamar “Educação para a mente e para a alma” ao invés de “Educação moral e cívica”, nos moldes que eu tive esta disciplina, quem sabe pudéssemos nos ver com mais naturalidade. Sem tanta pompa nem hipocrisia.
Nesta disciplina professores ensinariam seus alunos que todos nós somos seres que temos instintos agressivos e que somos naturalmente violentos e que esta violência pode se voltar tanto contra nós mesmos como para os nossos “semelhantes”. Nesta toada, poderíamos discutir também o duvidoso mandamento religioso “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, demonstrando às crianças como isso é contrário à nossa natureza mais primitiva.
Também poderíamos discutir abertamente com as crianças e jovens que os impulsos sexuais fazem parte da nossa natureza desde que nascemos, embora, é verdade, não possamos fazer tudo o que desejamos (nem em termos de sexo, nem de agressão) sem colocar em risco a nossa sociedade.
E – isso seria a cereja do bolo – quem sabe pudéssemos ainda discutir seriamente se realmente a sociedade que estamos construindo é aquela que queremos e se vale mesmo a pena pagar o preço que ela nos exige. Tudo isso com muita racionalidade e clareza. Sem enganações, nem hipocrisias.
Este projeto de sociedade, educativo e formador de valores por excelência, seria a prioridade dos governantes que, em nosso caso, por ora, estão muito ocupados discutindo a pena e os embargos infringentes do mensalão.
Assim como é responsabilidade dos pais desenvolver e estimular valores elevados em seus filhos, também é responsabilidade dos governantes de um país desenvolver isso em seu povo, assim como nos ensinou Platão em “A república”.
Na falta disso, o futebol continuará a manter a importante função de dar contornos, ainda que precários, a isso que nos constitui – a nossa animalidade.
Com isso não quero dizer que o futebol ou outros jogos com alta carga catártica deixarão de ter sua função nas sociedades humanas. Ao contrário! Podemos observar como em muitos países desenvolvidos o futebol e outros jogos competitivos são mantidos e possuem alta estima entre a população. Isso se deve ao fato, conforme mostrei acima, de que estes jogos tem a importante função de propiciar espaços de catarse para a agressividade.
O que pretendi mostrar aqui é que pelo menos no caso da sociedade brasileira, na falta de um projeto de sociedade que estimule a formação integral do humano, algo que só se conquista pela verdade, o futebol e a copa do mundo continuarão a ter a importante função de dar sentido às nossas vidas. E isso, realmente, é muito menos do que podemos fazer como indivíduos e como sociedade.