Qualquer esforço em direção ao telefone era impossível para mim. Havia uma premonição tenebrosa se formando: a de que quanto mais eu caminhasse para o abismo, mais desgarrada e infiel aos padrões eu me tornaria. Uma revolta crepuscular queimava em meu peito e eu dizia a mim mesma:
– Não. Não quero mais esta selvageria mentirosa. Todos estão doentes, verdes e desmantelados. Por que só eu percebo isso?
Minha única vontade era enrolar-me em mim, como caracol enegrecido, cauda junto de cabeça, pele junto de pele, até formar uma só coisa, um só nada. Até sumir.
Brotava em mim, de forma desenfreada, um puro desejo de não ser mais. Nada de telefonemas, de metáforas, de meios sorrisos, de olhares que se desencontram das palavras. Meu ser clamava pela verdade. Sem ela, me recuso agora a viver. O telefone olhava para mim, com ar impaciente. Precisava ligar para o banco, resolver pendências. É que eu havia perdido minha identidade e não sabia onde ela havia ido parar. O problema – e nisso residia grande parte da minha vergonha – eu havia sido descoberta em minha ausência de identidade pela linda moça do banco que, cheirosa e malévola, atendia sorridente aos clientes do dia. Descobri que estava completamente sem identidade justo diante daquela linda moça. Fiquei estarrecida, envergonhadíssima. Ela, babando de prazer por ver minha dor e culpa, disse triunfante, para todo mundo ouvir:
– Não posso fazer nada por você, meu bem. Nada me prova que você é você mesma! Precisa de sua identidade.. Como saiu de casa sem ela?
Pronto. Agora eu estava desnuda diante de alguém em quem eu sentia não poder confiar.
Só de me lembrar do olhar medonho e cítrico da linda e gentil moça do banco que, tremendo de prazer por dentro, dizia que eu precisava provar que eu era eu, que sem isso ela não poderia me ajudar e que, sem a minha identidade tal prova não seria possível, eu explodia de dor e de vergonha, por repassar, detalhe por detalhe, aquela cena vexatória. Sentia-me culpada por estar ali, despida, uma sem identidade, diante da moça linda do banco. Aquela que parecia ter uma identidade tão sólida e bem apanhada. Aquela que não havia carregado o fardo de ter nenhum tipo de dúvida a respeito de quem ela era.
Lembro-me exatamente dos seus olhos de dinossauro mirando o meu colar de pérolas. Ela babava como criança frente aos tesouros maternos. Boca cavernosa se abria e se fechava. Meu coração palpitava. Sabia que estava prestes a ser engolida por aqueles olhos de carniça.
Mais uma vez insisto em perguntar se não poderia me ajudar. Afinal, eu estava sem identidade somente naquele dia. Não era sempre que eu saia sem identidade por aí…
Responde, insolente, com um sonoro NÃO. Afinal, como eu poderia provar que eu era eu mesma? Pois é. Como eu poderia provar que eu era eu mesma? Cena insólita. Quem eu sou? Eu sou eu? Como provar? Prova? E eu permaneci ali, olhando, tonta, aquela bocarra de dinossauro, rindo para mim. Assumi minha incompostura e senti vergonha.
– Como ousei sair de casa sem documento? Sem identidade? Eu não sabia que não há espaço lá fora para os sem identidade?
Agora estava eu aqui, humilhada, sendo vomitada pela linda moça com olhos de Calígula. Eu, a que não tinha identidade. Baixei a cabeça, em sinal de vergonha e luto, e assumi minha condição sem identidade. Pude sentir em minhas costas seu olhar de triunfo:
– Lá vai a pobre coitada. Sem identidade!
Fui para casa, assumindo todo o peso da podridão dos sem identidade. Morte a eles! E agora estava eu aqui a relembrar toda esta cena dolorosa, que destampou minhas carnes, tornou tudo tão explicito: Eu era sem identidade. Senti raiva e fúria.
Depois deste episódio, fui para casa. Humilhada, a cada dia eu religiosamente ligava para o banco, exatamente às dez da manhã – era este o horário que a instituição abria suas portas ao público – e perguntava à linda moça se ela havia, finalmente, encontrado minha identidade, talvez caída pelo chão só esperando para ser encontrada. Era estranho pensar que, depois de eu haver sido descoberta em minha ausência de identidade pela linda moça do banco, havia ficado refém dela.
A repetição persistente e contínua deste suicídio cotidiano – o ato de ligar para o banco e falar com a linda moça cheia de identidade – foi me deixando completamente sem força para respirar. Queria poder retornar ao líquido amniótico. Viver era doído. Ligar para o banco, mais ainda.
Em meio a este turbilhão de pensamentos de pássaro, escuto tocar a campainha sonora do telefone. Seu barulho fere meus ouvidos como um grito alto e ensurdecedor.
O telefone continuou tocando, sua campainha a me engolir. Atendo.
– Alô?
A voz quase não me sai da garganta. Tremo toda. Do outro lado, uma voz cavernosa diz.
– Por favor, preciso falar com Amélia.
Respondo que sou eu.
– Sou?
A voz rouca diz:
– É que encontramos sua identidade morta no chão do banco. A senhora precisa vir buscar com urgência, pois não pode ficar sem ela. Precisa dela.
– Preciso?
Desligo o telefone num grito de vingança.
– Tum, tum, tum…
E tudo fica silencioso outra vez.
Querida Ana Laura,
Ha’ muito tempo acompanho seus textos de teor psicanalítico e aprendo muito com eles, visto que me propiciam muitas reflexões. No entanto, devo dizer que a leitura das crônicas que você tem postado recentemente tem me dado muito prazer. Me identifico muito com seus personagens e as angústias que eles expressam e personificam. Agradeço por estar postando essas pequenas pérolas! Um forte abraço!
Cara Lenice,
Fico imensamente feliz por você acompanhar as minhas produções, mas sobretudo, pelo prazer que tem sentido com a leitura das minhas crônicas, que é algo que também me é muito prazeroso fazer. Na minha perspectiva, o escritor se alimenta do olhar do leitor, assim como o artista se alimenta do olhar do expectador. Um não existe sem o outro. Então, sinta-se à vontade para comentar minhas crônicas toda vez que desejar e compartilhar aqui neste espaço os sentimentos que a minha escrita evocaram em você. Grande abraço!