Recentemente enterrei minha avó materna. Ela se chamava Maria. A mesma Maria da música de Milton Nascimento e Fernando Brant: uma mulher que merecia ter vivido e amado como outra qualquer do planeta. Mas, como comportada Maria que era a minha Maria ria quando devia chorar e estava mais habituada a aguentar do que a viver. Por isso se despediu da vida com os mesmos olhinhos tristonhos com os quais eu me lembro dela em grande parte da vida.
No ataúde, vestiram-na de cor-de-rosa, pintaram seus lábios de rubro como se lhe tentassem reparar uma feminilidade que a minha Maria nunca conseguiu realizar em vida, no prazer estonteante de ser mulher. Como todas as Marias do planeta, a minha Maria também trazia no corpo a marca. Mas a ela não foi ensinado, por outra Maria já iniciada nos mistérios, que a marca que lhe cingia o corpo era estado de pura poesia e de puro amor, capaz de curar as feridas do mundo todo, caso ela assim quisesse.
A esta Maria, pobre Maria, foi transmitido que se devotar ao homem amado era conduta humilhante e não sábia; que ter prazer sexual junto ao seu corpo, era ser puta e não santa; que não desejar uma nova gravidez, era pecado e não inteligência; que ser despudoradamente feliz e sensual, como se em estado de gestação perene do mundo inteiro, era falta de educação com todas aquelas Marias que, por covardia ou medo, desistiram de si mesmas pelo caminho.
Mas agora tudo findou. Sua existência sobrevivente, de mulher Maria sofrida, finalmente chegou ao fim. Resta dela a missão, herdada por suas filhas e netas, de elaborar o nunca completamente elaborado mistério do que é, afinal, ser uma mulher. Como herdeira de minha querida Maria, orgulho-me de estar no caminho, à procura, não de respostas, mas de entendimentos. Faço-o por ela, por minha querida mãe, e por todas as minhas companheiras Marias que habitam este planetinha azul. Descubro quotidianamente junto de minhas pacientes, de minhas queridas alunas e, por que não, das filhas que nunca terei, que ser mulher-Maria é ter guarra, mas sem nunca perder a graça; é dizer a palavra certa, mas sem perder a doçura; é ter entranhas de ferro para carregar as dores do mundo e, ainda assim, nunca perder a estranha mania de ter fé na vida.
No frenesi do último instante em que sabia tocar seu corpo frio de menina nunca nascida pela última vez, coloquei junto aos seus dedos hirtos uma foto de nossa família e lhe cantei bem baixinho no ouvido, agora já surdo para as dores e alegrias do mundo, uma prece de gratidão.
Cada mulher tem uma sina, uma missão destinada a cumprir. A de minha Maria foi dar ao mundo quatro Marias boas e honestas, e nisso ela cumpriu sua meta. Ficou a se realizar a tarefa mais árdua e também a mais arriscada: parir indefinidamente a si mesma. Por isso, prometo-lhe: farei isso por nós todas! Viverei a cada instante como uma mística santa, indo à cata de cada fragmentozinho meu espalhado por entre as terras, as formigas, os bosques densos, as luas grávidas de luz; buscar-me-ei incansavelmente nas águas das chuvas, dos rios e dos mares quentes, no sol poente de cada dia que morre e no sol nascente de cada dia que brota. Lançarei meu espírito em cada um destes seres miraculosos, copularei com eles, e, nesta cópula, parirei a mim mesma muitas e muitas vezes. Desta, nascerá um lindo ser híbrido, meio-jovem, meio-velho, meio -sábio, meio-criança, meio-vivo, meio-morto. Porque eu sei que é lá, no entre-mundos, entre o passado e o futuro, que eu ei sempre de encontrar a minha doce Maria.