Neste texto partirei do estimulante livro “Mata-se uma criança” do psicanalista francês Serge Leclaire (1977), que acabo de ler, para desenvolver minhas próprias elaborações a respeito deste tema tão sinistro e fortemente evitado, mesmo entre os psicanalistas.
Leclaire parte da seguinte ideia: aceitamos com alguma tranquilidade a presença de desejos assassinos dirigidos ao pai e a mãe da criança edipiana. Mas, a fantasia de matar crianças, animada pela mente dos genitores, é algo, segundo ele, fortemente evitado e que causa repulsa.
Sustentando sua argumentação, cita que na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, o personagem trágico Édipo só assassinou o pai e desposou a mãe porque a criança, que foi enviada pelo pai para morrer no monte Citerão, foi encontrada por um pastor. Para quem não conhece a tragédia, vamos a um breve resumo:
Laio, pai de Édipo e rei de Tebas, foi amaldiçoado pelos deuses por ter seduzido Crisipo, filho do rei Pélope. Consultando o oráculo de Delfos, Laio é informado de que sua maldição consistia em que seu filho primogênito ainda não nascido, Édipo, o mataria e desposaria sua mulher, Jocasta. Frente ao horror deste possível desfecho – de parricídio e incesto – Laio manda matar Édipo assim que a criança nasce. Encontrado por um pastor no monte Citerão com os pés amarrados e prestes a morrer, Édipo é entregue a Pólipo, rei de Corinto e criado por ele e sua esposa como se fosse seu filho legítimo. Já adulto e, interessado em saber sobre origens, consulta o oráculo de Delfos que, mais uma vez, lhe fala a respeito de sua maldição: matar seu pai e casar com sua mãe. Horrorizado frente à possibilidade de matar Pólipo, foge de Corinto para Atenas. Sem saber, ia ao encontro do seu destino tão temido. No caminho, encontra uma caravana, liderada por Laio (seu pai verdadeiro) e mata a todos, inclusive Laio. Já em Tebas, resolve o enigma da esfinge e, como recompensa, casa-se com a viúva Jocasta, com quem tem vários filhos (Antígona, Polinices, Etéocles e Eumênides). A partir daí a cidade começa a ser dizimada por um terrível peste. Questionando o oráculo, este lhe informa que a peste se deve ao fato de que o verdadeiro assassino do rei Laio estava na cidade. A peste só cessaria quando o assassino fosse descoberto. Depois de investigações do próprio Édipo que vai paulatinamente se aproximando da verdade – que era ele o assassino do pai e o filho incestuoso – o cego Tirésias lhe revela toda a verdade confirmando ser ele o parricida gerador da peste. Frente ao horror da verdade, Édipo fura os olhos e é exilado, por longos anos, em Colono.
Leclaire chama a atenção para o pouco foco que se dá aos elementos da tragédia que antecedem o parricídio e o incesto embora determinantes no destino funesto de Édipo. São eles: homossexualidade de Laio e intento de assassinar o filho que, vivo, revelaria ao pai seu crime sexual e maldição. E é por aí que transita Leclaire.
Questionando, a partir da peça trágica, quais as motivações inconscientes que animam o desejo dos genitores de matar sua criança, ele enumera algumas delas, que eu pretendo discutir neste e nos próximos textos. São elas:
1) A criança real não é a “criança maravilhosa” do narcisismo dos pais.
2) A criança carrega consigo segredos sexuais dos pais.
3) A criança revela, em estado bruto, a ausência do recalque.
4) A criança fala, embora esta seja uma “outra” fala.
Vejamos o primeiro aspecto:
O que é a “criança maravilhosa”? Em “As sete invejas capitais” Chuster e Trachtemberg (2009), comentando as ideias de Leclaire, lembram o seguinte: que apesar de Freud ter dito que o ódio é mais antigo que o amor no psiquismo, esta premissa não é válida quando se trata do eu. Ou seja, somente no caso do eu, o amor é mais antigo que o ódio. O que significa isso?
Que o primeiro objeto de amor que nós temos na vida é a gente mesmo. Na psicanálise chamamos isso de narcisismo primário. Dito em termos bem simplistas: cada ser humano, lá nos recônditos de sua mente, nutre uma profunda paixão por si mesmo (já repararam como a gente não resiste a um espelho e quão fascinados ficamos pela nossa própria imagem?). Esta é a nossa “criança maravilhosa” ou “sua majestade, o bebê” (como Freud chamava) que habita desde sempre o nosso psiquismo. Pois bem. Quando um casal vai ter um bebê, Freud (1914) diz, eles depositam neste bebê imaginário (que ainda não nasceu, exceto na cabeça dos futuros pais) esta “criança maravilhosa” que eles, os pais, foram e no inconsciente ainda são. Então estes futuros pais acalentam a ideia inconsciente de que irão poder reencontrar suas “crianças maravilhosas” em seus filhos. Por isso Freud diz: é o narcisismo dos pais que anima o narcisismo da criança.
Até aí tudo bem. Mas, qual o entrave aqui? Quando a criança real nasce os pais, paulatinamente, terão que ir fazendo o luto pelo fato de que esta criança real não é a “criança maravilhosa” (eles próprios) que esperavam. Por ser, como o nome diz, uma criança real, é diferente dos pais. Acontece que, de forma muito inconsciente, a criança percebe as expectativas que os pais depositam nela (de suas “crianças maravilhosas”) e para receber o que consideram o amor destes, ela fará de tudo para corresponder a esta “criança maravilhosa” que há dentro da mente dos pais. Bem, já podem imaginar a quantidade de enroscos que isso gera, tanto na vida dos pais quanto na vida da criança.
O pai espera que seu filho seja mais bem sucedido, mais feliz, mais esportista, mais potente do que ele foi. A mãe espera que sua filha se case com o homem dos seus sonhos ou que ela não se destaque mais do que ela própria (quando há competição e rivalidade excessivas). O sofrimento é geral, principalmente porque esta “criança maravilhosa” não é consciente para os pais. Ou seja, eles não sabem que nutrem estas expectativas com relação aos filhos. Lacan partiu daí para considerar, no campo da patologia, que, por exemplo, a mãe histérica goza com o filho como se este fosse seu falo.
Bom, então já dá pra começar a entender porque os pais nutrem, lá no fundo de suas almas, um desejo inconfessável de que seu filho ou filha morra: ele ou ela me frustra, frustra a minha “criança maravilhosa”. Isso explica bastante bem a depressão pós-parto e o incontável número de “acidentes” que ocorrem com bebês pequenos. Também explica o “esquecimento” de crianças dentro de carros, a queda de janelas, a violência física e sexual cometida contra crianças na família e na escola. Para Chuster e Trachtemberg, não dá pra entender o comportamento humano com as crianças sem levar em conta o desejo de “matar a criança”. Citam e se perguntam: quando uma criança é abusada sexualmente, o que o abusador mata nela não é a criança que é morta por não estar preparada para lidar com aquele excesso de sexualidade?
No indigesto filme “Anticristo” esta questão – a concretização do desejo de assassinato da criança em um casal bastante narcísico – é retratada de forma nua e crua.
Mas, quando a mãe não é muito narcísica os sentimentos de ódio e desejo de que a criança morra são recalcados e transformados no seu contrário: amor.
Inclusive, do ponto de vista histórico, é possível hipotetizar que ao longo da evolução cultural – o que significa em termos psicanalíticos a instância superegóica, representante da lei, colocando algum freio nos impulsos – houve tentativas cada vez mais substanciais de recalque desde desejo de matar a criança. Badinter (1980) em “O mito do amor materno” faz uma extensa revisão histórica para mostrar como na Idade Média, por exemplo, era extremamente comum e corriqueiro que uma mãe deixasse seu filho no lixo ou o desse para alguém. O sentimento de “amor materno” não existia, tal como o compreendemos hoje. Do ponto de vista psicanalítico, os mecanismos de recalque ainda não estavam bem instalados culturalmente. Portanto, noções como culpa e remorso não fazia parte do vocabulário daquelas mulheres. Pois, este sentimento só existe quando, no psiquismo, está havendo uma luta intensa entre os sentimentos de amor e ódio, sendo a culpa o resultado desta disputa.
Mas, voltando à questão “mata-se uma criança”, podemos fazer um exercício interessante de pensar como este desejo comparece em nossa sociedade dita “civilizada” como uma forma de solução de compromisso entre o desejo e a repressão.
Algumas coisas me vêm à mente: Rituais de iniciação como batismo, por exemplo. Como não pensar na cena da criança tendo a cabeça molhada ou afundada na água (como acontece em algumas religiões) como uma cena que representa a um só tempo, um novo nascimento, mas também a cena de um afogamento? Sabe-se, por exemplo, que em povos ditos mais “primitivos” rituais de iniciação que marcam diferentes fases da vida costumam ser bastante violentos. E as cantigas infantis? “Dorme neném que a cuca vem pegar. Papai foi na roça, mamãe foi passear”.
O que diz esta aparentemente tão inocente canção: papai e mamãe foram cuidar da vida deles e você ficará dormindo sozinho. Qualquer alusão à cena edípica (pai e mãe fazendo coisas juntos e um bebê sozinho não é mera coincidência). E o que acontece com uma criança que fica sozinha? Morre…
Enfim, os exemplos são inúmeros. Já fui questionada se estas cantigas de ninar “fazem mal”. Certamente que não. Se elas foram criadas ao longo do processo de formação cultural, devem servir a algum propósito. E a psicanálise nos ajuda a entender qual seja ele: transformar em narrativa, em uma história possível desejos sinistros que assombram a mente de pais, mães e filhos desde sempre. Por isso, viva as cantigas de ninar e os rituais de passagem!
Nos próximos textos comentarei os demais itens elencados por Serge Leclaire.
Ola Ana Laura Moraes Martinez, tudo bem?
Não encontrei a continuação do texto sobre os outros ítens que falou que iria comentar sobre “Mata-se uma criança”.
Você tem ele para me passar, o o próprio livro “Mata-se uma criança”, pois não encontro ele online.
E por fim parabens pelo texto, esta me fazendo um bem
Att,
Abraço
Alexandre Silveira
Alexandre, fico feliz que tenha gostado do texto. Realmente ainda não encontrei um tempo para retomar os outros itens de Leclaire e produzir um texto. Sobre o livro de Leclaire, enviei-o direto para o seu e-mail. Forte abraço.
Ana Laura, ouvi falar sobre este livro na supervisão de hoje e o tema me despertou profundo interesse. Seu texto inclusive é muito claro e contribui mais ainda para o tema. Se você puder me enviá-lo também por e-mail, ficaria grata.
Ana Rafaella
Olá, Ana. É claro que posso te mandar! Abraços.
Ana Laura, tudo bem? Seria possível me enviar o livro? Estou muito interessado. E parabéns pelo texto e transmissão.
Oi Ana Laura, por gentileza você poderia compartilhar o pdf do livro “Mata-se uma criança” do psicanalista francês Serge Leclaire? Estou querendo trabalhar e pensar algumas questões sobre. Eu tive acesso a algumas citações desse livro a partir de um outro livro que se chama: Eu narciso e Outro Édipo.
Obrigada!
Obrigado por compartilhar este texto e reflexão feita por você. Comecei a ler o livro e suas breves palavras me auxiliaram a compreender melhor o campo em que comecei a pisar. Espero compreender mais, além disso, ler mais seus textos.
Ah, se for possível, quero pdf também, pois a versão que consegui parece ser bem antiga e um pouco ruim de ler.
Abraços;
att, Matheus.