Maternidade: escolha ou destino?

imagesNa semana passada vivi uma experiência desagradabilíssima, que servirá como estímulo para minhas reflexões neste texto. Vamos à cena:

Eu e um médico ginecologista, bastante avançado em idade. Tratava-se de uma consulta de rotina. Depois dos procedimentos rotineiros, o médico me indaga, com olhar inquisidor:

– Você não vai ter filhos?

– Por enquanto não. Respondo prontamente.

Silêncio sepulcral…

Ele, indignado (não sei se mais indignado com a resposta ou com o meu silêncio), continua:

– Mas, você ou o seu marido tem algum problema físico?

– Não.

Agora, já vermelho e com os olhos flamejantes, pergunta, em um misto de indignação e constrangimento:

– Então, é uma escolha?

– Sim, é uma escolha…

O clima era tenso, quase prestes a explodir.

Era tragicômica a cena: eu diante daquele “bom velhinho”, cheio de “boas intenções”. Ele desesperado diante daquela jovem, grávida de desejos e de vida. Diante de alguém que já dançou muito de perto com o seu próprio desejo, para se submeter ao desejo do Outro…

Percebendo o seu constrangimento e terror diante do meu silêncio, resolvi ajudá-lo a sair do imbróglio e disse, em tom ameno:

– O senhor parece achar muito estranho uma mulher não querer ter um filho?

Minha fala foi como encostar uma agulha em uma bexiga cheia. Bum, agora explodiu – pensei com os meus botões. E, finalmente, o nosso “bom velhinho”, pôde nomear seu pensamento tenebroso:

– Sim, eu acho um absurdo! (disse quase gritando). Você devia largar essa porcaria de remédio e viver a experiência de ter um filho!

Sai de lá bastante pensativa. O meu sentimento era o de estar cometendo um crime grave. De ser eu uma grave criminosa. Mas, qual seria o crime? De que é que aquele “bom velhinho” estaria me acusando? Fiquei tempos a pensar sobre isso porque intuía que nestas minhas indagações poderia descobrir coisas importantes sobre como as pessoas compreendem temas espinhosos, tão permeados por moralidades e idealizações, tais como, a maternidade, a natureza, o feminino.

Então, vamos a algumas das minhas associações:

Qual o meu crime na visão daquele médico?

Certamente, há um crime contra a natureza. Este é da ordem do pensamento moralizante religioso. Cada espermatozóide desperdiçado em uma masturbação, cada óvulo que não é fecundado, para o pensamento religioso, é um assassinato. Um bebê potencial que deixa de nascer. O que, no pensamento primitivo, equivale a extermínio.

Mas, há algo mais. Na perspectiva daquele médico, eu também era uma criminosa por estar desafiando a ordem da natureza dita “feminina”: a natureza fez a fêmea para parir, para procriar. Mas, nós não castramos cães e gatos para evitar a superpopulação? E, nós, humanos? Até onde eu sei a nossa espécie não está ameaça de extinção. Então, porque é que eu teria que contribuir com a propagação da nossa espécie – tão simpática, aliás – tendo um filho? Já não há seres humanos demais morando nesse planetinha azul? E, além disso – será que somos assim tão valiosos, uma raça tão boa e amistosa para se querer colocar mais um ser humano neste mundo? De minha parte, sinto que já pude elaborar um pouco do meu narcisismo e da minha necessidade de perpetuar meus genes (que nem acho tão maravilhosos assim!). Além do mais: se a questão é viver a experiência da maternidade, não há tantas crianças esperando mães e pais em abrigos? Não teríamos de pensar coletivamente como resolver o problema da falta de famílias para estas crianças antes de pensarmos em satisfazer nosso narcisismo?

Ainda pensando do ponto de vista evolutivo, ter um filho é uma contribuição do indivíduo com sua espécie, certo? Mas há inúmeras outras formas de uma pessoa contribuir com o desenvolvimento de sua espécie, por exemplo, fazendo avançar a ciência, governando um país, educando crianças que já foram colocadas no mundo ou , como é o meu caso, cuidando de gente já nascida – algo que tem valor inestimável para a geração presente e para as futuras.

O que estou querendo frisar a vocês é que ter um filho é uma responsabilidade ética para com a nossa espécie. Pois, na medida em que se decide dar vida à uma criança, os pais devem sim buscar oferecer à sociedade o melhor humano que eles puderem formar. E isso exige tempo, dedicação e muito trabalho.

Mas, continuando minhas associações, há outros crimes envolvidos aí.

Há também o crime da liberdade e do prazer. Não há nada mais terrível para uma alma que já perdeu a chance de se perguntar o que anima o seu desejo do que a liberdade alheia. Talvez aquele médico, sobretudo com a proximidade da morte, ache muito arriscado viver com liberdade. Talvez também ele venha de um tempo em que mulheres não ousavam viver com liberdade, usar seus corpos e seus sexos para ter e dar prazer. Estamos aqui no campo do que se comumente chama “machismo” que nada mais é, em termos inconscientes, que o medo atávico que o homem carrega do sexo feminino.

Ao longo da história, a figura feminina (este ser esquisito, castrado, sinistro e misterioso) sempre meteu medo no homem porque a mente infantil carece de condições de representar a ausência do pênis. Trocando em miúdos: para um homem, avistar uma mulher, significa lembrar-se do risco de sua própria castração. Relembro que Freud considerou que na fase fálica a criança, de ambos os sexos, considera a existência de dois tipos de seres humanos: os com pênis (meninos) e os sem pênis (meninas). A complexa noção do que é uma mulher, detentora de uma vagina e não só de um clitóris (pequeno pênis), só será constituída mais tarde, na fase genital. Só para exemplificar este temor inconsciente da figura feminina, basta nos lembrarmos das inúmeras figuras míticas construídas ao longo da história sobre a mulher: medusa (uma mulher cheia de cobras-pênis na cabeça), sereia (que enfeitiça e mata com seu canto sedutor), bruxa (figura perigosa que voa em sua vassoura-pênis), etc.

Então, para aquele médico, duplamente investido em seu narcisismo – por ser homem e por ser Deus-médico-vencedor-da-morte – aquela figura castrada e portadora de um corpo desejante, era duplamente assustadora.

Assustadora por ser mulher. Assustadora por desejar: não um filho (do homem), mas ser Sujeito do seu próprio desejo. Um ser que ousa não se sujeitar ao desejo do Outro (no caso que estou investigando, o saber médico, o saber masculino, o saber da natureza…).

Mas, por outro lado, não seria este o objetivo final de uma análise? A possibilidade de um ser humano, homem ou mulher, poder encontrar sua própria trajetória narrativa marcada por infindáveis possibilidades de sentir e dar prazer na vida, para além do falo / filho?

E, para terminar, há algo mais a ser dito. Trata-se do discurso: Ter um filho como uma experiência!

Este é um significante muito marcante quando o assunto é maternidade. Há neste mandamento a ideia implícita de que uma mulher, sem a maternidade, ficará com sua vida incompleta. Faltará a ela esta experiência sublime de parir. Ficará manca, incompleta, infeliz. Será?

Pergunto duas coisas: A maternidade é mesmo uma experiência? E, aquilo que a maternidade propicia a uma mulher, só é vivida quando se tem um filho?

Vamos à primeira questão. Não, a maternidade não é um experimento, uma experiência na qual se pode entrar ou sair quando se quer. Não é como comprar uma roupa, escolher uma viagem, comprar um apartamento. Em todas estas situações, se você decidiu que não gostou da experiência – de ter aquela roupa, de fazer aquela viagem ou de comprar aquele apartamento – você pode voltar atrás sem grandes consequências.  A maternidade é uma escolha. Uma escolha que implica em consequências e responsabilidades para a vida toda. Uma mulher não pode querer viver a experiência da maternidade, só para experimentar, e depois não querer mais.

Portanto, a maternidade não está no campo da experimentação. Ela está no campo das escolhas éticas e responsáveis que um ser humano adulto deveria estar preparado para fazer em sua vida. Daí a necessidade de cada um de nós se perguntar antes de ter um filho: Eu realmente quero um filho? O que significa ter um filho? Por que eu quero ter um filho? Que implicações isso vai ter em minha vida? E eu estou disponível para estas implicações?

Isso sem falar das motivações inconscientes para se desejar um filho, estas das quais a gente só pode conhecer algo na análise: dar um filho ao pai edípico, reparar danos feitos à mãe, reconstituir-se narcisicamente fazendo do filho um falo e por aí vai. Em um artigo muito interessante intitulado “Desejo de ter filho ou desejo de maternidade e paternidade?” a psicanalista Maria Lúcia Violante é enfática ao dizer que a maternidade / paternidade não é para quem quer, mas é para quem pode. Compartilho plenamente desta afirmação. A experiência da maternidade / paternidade requer lastro interno e percursos por dolorosas elaborações de nossas vivências edipianas.

Apesar disso, o que eu vejo quotidianamente é muito diferente desta reflexão séria e profunda que a maternidade e a paternidade exigem: vejo mulheres e homens que decidem experimentar ter um filho, mas não levam em conta a responsabilidade implicada neste ato. Em seguida, vejo milhares de crianças sendo criadas por avós, já cansadas por terem realizado a sua dívida com a sociedade, que é cuidar de seus próprios filhos. Sinto muito, mas isso para mim não é maternidade. Maternidade implica crescimento mental, responsabilidade com a escolha, implicação do desejo!

Tudo o que eu disse vale também para a paternidade, embora, neste caso, a não implicação paterna seja mais fácil por não ser o homem a gestar, amamentar e ser responsável pelo cuidado primário de um bebê.

Agora, a segunda questão. Em 1940 ou 1950 pode ser que o único prazer acessível à mulher fosse mesmo parir. Mas, hoje, nós mulheres – graças à luta de mulheres corajosas que, a partir da década de 60, junto de outras minorias sociais, saíram às ruas em busca de reconhecimento e de direitos – temos o privilégio de ter prazer em infindáveis tarefas: escrever livros, estudar, trabalhar, gozar de uma relação satisfatória na parceria amorosa*, viajar, comer bem, dormir bem, ler livros, ver bons filmes… A lista é infindável. Então, acho ótimo que nas classes mais favorecidas, intelectual e financeiramente, a maternidade tenha sido cada vez mais uma escolha e não uma imposição da natureza. Sinal de que nós estamos evoluindo, deixando de ser só bichos. Mas, como esta minha experiência mostra, o caminho ainda é longo…

Para finalizar, dedico este texto a todas as mulheres corajosas que insistem quotidianamente em fazer falar o seu desejo, colocando-se como sujeitos protagonistas de suas histórias e não como objeto de desejo alheio.

Também dedico este texto – como um alerta – a todas as mulheres desavisadas que porventura tiveram um filho não para atenderem a um desejo vindo de suas entranhas, mas para satisfazer o desejo alheio bem como o próprio desejo de ser objeto do desejo alheio. Lamento por estas pessoas e por estarem tão desavisadas quanto ao que as anima verdadeiramente. Reafirmo que o exercício ético de sermos seres desejantes, tal como aprendemos com a figura trágica de Antígona, é uma escolha que requer muita coragem e bravura.

*Não compartilho da ideia feminista que nega a diferença entre os sexos, insistindo na premissa de que “homens e mulheres são iguais” ou “não nascemos homens ou mulheres, mas nos tornamos homens e mulheres”. Esta ideia do ponto de vista psicanalítico é incompreensível. O fato de uma criança humana nascer dotada de um pênis ou uma vagina traz consequências psíquicas marcantes e indeléveis para sua identidade. Ou seja, homens e mulheres são diferentes e esta diferença está inscrita, desde sempre, em seus corpos (erógeno, social, cultural). As confusões neste campo surgem – de ambas as partes – quando a percepção da alteridade (de que homens e mulheres são diferentes, com funções complementares) cede espaço ao discurso da submissão e da superioridade / inferioridade de um sobre o outro. Isso me faz pensar que, em termos sociais, ainda temos dificuldade de sair do modo de pensamento do momento fálico em que só há duas categorias de humanos: os que dominam e os que são dominados.

Um comentário em “Maternidade: escolha ou destino?”

  1. Ana sempre me surpreendendo em seus belíssimos textos. Há muito tempo não passava por aqui.

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