Acabo de fazer uma viagem linda com o meu marido. Juntos, trouxemos na bagagem, além de fotos e memórias, algumas aprendizagens valiosíssimas. Uma viagem, assim como qualquer nova experiência, quando contida pela mente daquele que a vivencia, enriquece e amplia o psiquismo. Dito de outro modo, quando uma experiência desconhecida pode ser processada e sonhada pela mente, há expansão mental que leva a novos desenvolvimentos e aprendizagens. Mas, quando o contato com o desconhecido é angustiante demais e, por isso, evacuado, nada se pode aprender de novo. Volta-se o mesmo que se foi.
Mas, vejamos o que eu pude sonhar (no sentido utilizado por Bion) nesta linda viagem.
Primeiro, há a escolha do lugar. A cada viagem que fazemos noto que eu e meu marido temos escolhido cada vez mais lugares que nos coloquem em contato profundo com a natureza. É como se, mesmo sem termos tanta consciência disso, partíssemos em busca de fazer o caminho contrário à civilização (da repressão ao pulsional). Desta vez, o contato com a natureza foi intenso e vitalizante. Aos poucos, fomos esquecendo o relógio e passamos a nos guiar pelos dois parâmetros naturais mais amplamente utilizados pelo homem primitivo: a fome e o movimento do sol. Alegres, perguntávamos um ao outro. Que horas são? E ambos respondíamos: “Pela posição do sol deve ser tal hora”. Ou ainda: “Bem, como já estou sentindo fome, deve ser mais ou menos tal hora.”
Ressalto que este movimento mental que Winnicott nomeou estado de não integração é algo, ao mesmo tempo, prazeroso e angustiante de ser vivido, porque o que ocorre nestas situações é um afrouxamento das defesas do ego e um aprofundamento no contato com as forças instintivas do id.
Penso que é, em grande parte, pelo medo de se vivenciar este estado de não integração (que é vivido pela pessoa como o equivalente a um estado de desintegração) que faz com que muitas pessoas evitem a situação das “férias”. Ou seja, a perda da situação rotineira de trabalho, guiada pelos ponteiros do relógio e pelo estabelecimento dos rituais convencionais que servem como marcadores da passagem do tempo servem para proteger o psiquismo do contato com o Real (horário de almoçar, de trabalhar, de dormir, de acordar, etc.).
Afinal, como disse certa vez um conhecido: “Ter um corpo é uma coisa que espanta”.
Em situações de “férias” a perda ou o afrouxamento destes rituais marcadores do tempo (a chamada rotina) propicia um estado de não integração e de relaxamento profundo. Neste caso, pessoas que não se sentem bem constituídas em seus selfs (eu) podem vivenciar este estado de não integração como algo terrivelmente angustiante: com um sentimento de perda de identidade e de sentido da própria existência.
Mas, voltando às minhas férias, gostaria de destacar duas experiências que me possibilitaram, respectivamente, um contato profundo com a natureza e – o contraponto disso – o temor que este contato pode mobilizar em pessoas que estão em um estado altamente defensivo com relação às forças intempestivas da natureza (e do id).
Cena 01: Eu e meu marido nos entregamos inteiramente aos costumes locais (ficamos em uma vila distante mais de duas horas de uma grande cidade, em um cenário paradisíaco, mas também selvagem). Neste clima, decidimos fazer algumas aulas de kitesurf. Este esporte é praticado utilizando-se uma pipa (também chamada kite) e uma prancha. Todo o movimento é feito na água, utilizando-se somente a força do vento. O meu professor era um jovem de mais ou menos dezoito anos, muito sábio.
Eu, temerosa frente à situação desconhecida e ao poder implacável do vento, vi-me agarrada ao trapézio, que serve para dirigir o kite. Percebendo a situação, meu sábio e jovem professor disse: “Se você continuar brigando com o vento, você vai perder. Deixe-se levar por ele.” Aquilo não me saiu mais da cabeça.
Cena 02: Fugindo da rota “turística”, conhecemos um simpático restaurante local, com comida caseira e ótimo acolhimento. Lá pude ouvir uma história linda da dona do restaurante: ela mesma estava construindo sua casa, com a ajuda de amigos e vizinhos, em um esquema de mutirão. Tudo com o dinheiro de seu pequeno restaurante. Senti-me acolhida por uma grande mãe. Mas, lá também pude presenciar uma cena curiosa: um casal de turistas de olhar assustado, pergunta à dona do restaurante: “Não é perigoso andar por aqui à noite?” A reação da dona do restaurante foi curiosa. Parecia estar ouvindo outro dialeto, outra língua. Ingenuamente, ela pergunta: “Perigoso por quê?” Era a língua do medo que um ser humano tem de outro. Esta, ela parecia não conhecer.
Pois bem. Como podemos fazer conversar estas duas experiências vividas por mim? Será que uma coisa tem a ver com a outra? Que saberes preciosos estes “locais” carregam e que nós, da cidade grande, vamos perdendo de vista? Por que o meu jovem e sábio professor parece tão íntimo da língua selvagem dos ventos? O que significa este saber profundo: é preciso respeitar o vento e não brigar com ele? Seriam estes temores diferentes – o temor respeitoso frente à força intempestiva do vento e o medo que um ser humano sente por outro, tal com comunicado pelo turista? E por que aquilo soou como algo tão despossuído de sentido para a cozinheira-mãe?
Vamos à primeira situação. Diante da força incontrolável do vento, senti medo. Muito medo. A força com que eu era levada pela pipa era imensa. Talvez pela primeira vez pude viver a experiência de “pegar o vento nas mãos”. E a constatação foi: trata-se de um “deus” muito forte e poderoso. É preciso respeitá-lo, temê-lo. Mas, também é preciso se entregar a esta força e não lutar contra ela, pois, diante de seu imenso poder, com certeza vamos perder. Na linguagem da natureza perder significa morrer. Ou, no mínimo, machucar-se seriamente. Ressalto que depois de ter podido conversar um pouco com meu temor paralisante diante do deus-vento e tendo parado de brigar com ele, entregando-me a ele (eu e a natureza em estado de comunhão), a experiência de “pegar o vento com as mãos” foi incrivelmente prazerosa. Deixar o meu corpo ser levado pela pipa, velejando no mar, foi indescritível. Mas, só pude viver isso depois que me rendi ao poder do vento. Reconheci ser ele o deus e não eu, com meus braços frágeis a tentar lutar contra ele, a tentar ser onipotentemente mais forte que ele.
Trata-se, portanto, de uma experiência que fere o nosso narcisismo. Reconhecer-me muito mais frágil que o vento, reconhecer a sua fúria e o meu ínfimo tamanho perto de sua grandiosidade, faz-me (re) conhecer mais uma vez o meu exato tamanho nesta vida. O tamanho de uma poeira cósmica diante do incomensurável poder da natureza que sempre se impõe sobre nós. Este é o saber “local” que torna estas pessoas, em profundo contato com a natureza, tão sábias. Este é um saber que nós, da cidade grande, com nossos potentes aviões que nos dão uma falsa sensação de segurança, com nossos pretensos avanços tecnológicos (como a previsão meteorológica, por exemplo), vamos perdendo.
Com toda essa parafernália tecnológica vamos acalentando a ilusão de estarmos no controle, de termos o poder. Mas, nós não estamos. Nós não temos. E foi isso que pude apreender nesta viagem selvagem. Aliando esta ideia à psicanálise, podemos dizer que o inconsciente (nossa natureza interna) é como o deus-vento, incontrolável. Se nos rendemos a ele, se reconhecemos a sua majestade e força, podemos “surfar” na vida e sentir um baita prazer. Se lutamos contra ele, perdemos.
Há outro saber “local” riquíssimo a ser destacado aqui. Quando a cozinheira-mãe reconhece sua necessidade de vínculos e o fato de que sozinha nunca conseguirá fazer sua casa, outro determinante da nossa natureza humana está sendo respeitado e venerado. Trata-se do saber de que nós humanos, pela nossa imensa fragilidade, precisamos uns dos outros. Este é outro saber que nós da cidade grande negamos, esquecemos, violentamos. Pergunto eu: o medo paranoico da violência não é reflexo direto do afastamento do contato humano que vivemos em grau maciço nas grandes cidades?
Por isso meu impacto ao ouvir a pergunta do turista amedrontado e o estranhamento da cozinheira-mãe frente a ela. Para ele, o outro, o ser humano semelhante, é um ser perigoso, estrangeiro. É preciso se proteger dele. Para ela, o outro, o ser humano semelhante, é alguém que agrega, é alguém com quem se pode contar. Não representa uma ameaça vital.
Ressalto que em momento algum da viagem senti medo de outro ser humano. Nesta vila, todos eram iguais-diferentes. Todos usavam chinelos, andavam de um jeito simples. Por que lá o deus não era o homem. Lá o deus era a natureza, o sol, o vento, os golfinhos, o tempo…
Portanto, minha hipótese é: um ser humano só passa a sentir medo paralisante de outro ser humano, seu igual-diferente, quando perdeu o contato profundo com a sua natureza instintiva, pulsional que, em minha experiência, é o deus-vento, o deus-inconsciente.
Por outro lado, quando podemos entrar em contato com a nossa insignificância frente ao poder da natureza, o outro não é mais temido. Ao contrário, passa a ser um aliado. Frente à natureza selvagem, temos que nos unir e agregar, somar.
Este é o saber local que estas pessoas preservam, possibilitado pelo seu modo de viver menos civilizado que aquele do homem da cidade grande.
Ressalto que não utilizo o termo civilizado no sentido de julgamento de valor. Trata-se tão somente da ideia desenvolvida por Freud de que a civilização é desenvolvida pelo homem para se proteger da força intempestiva da natureza, tanto a externa quanto a interna (dos impulsos).
Nesse sentido, podemos brincar com a pergunta do turista amedrontado e arriscarmos a seguinte questão: De que ele tem medo? À qual perigo ele se refere? Terá ele medo do Outro ou de si mesmo? Terá ele medo daquilo que ele desconhece no outro, mas que também é ele? Quem é o desconhecido, o estrangeiro para ele? O outro? Ou ele mesmo?
Não pude vê-lo mais ao longo da viagem nem tive o privilégio, talvez, de acompanhar os seus olhos, quem sabe agora menos assustados com a vida pulsante que lá se apresentava. Faço sinceros votos que isso tenha acontecido: que no lugar do medo, êxtase e contemplação pudessem surgir em seus olhos. Para que um novo, selvagem e desconhecido universo pudesse se descortinar ao nosso amigo tão assustado: o mundo da natureza – a de dentro e a de fora.
Um adendo. Não pude dormir na viagem de volta. Lembrava-me o tempo todo que do lado de fora daquela cabine quentinha do avião, o nosso amigo, o deus-vento, impunha-se, feroz. E que ali dentro, todos nós, seres humanos, erámos poeira ínfima perto dele. Travava naquele momento, no íntimo do meu ser, uma batalha feroz com a morte. Esta companheira sinistra que nos acompanha desde sempre. É neste hiato, no encontro com o sinistro da morte que surge a fé. E, assim como Gilliatt do épico “Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo, que, diante da força intempestiva do mar, morrendo de fome, de sede e de frio, ajoelha-se e pede misericórdia, agradeci, maravilhada, o fato milagroso de estar viva.