Milton Nascimento tem razão. Minas Gerais tem uma melancolia poética bonita demais. Estive visitando Inhotim e Ouro Preto e voltei cheia de reminiscências, desejosa de poder expressar um sentimento evanescente difícil de ser posto em palavras.
Em Ouro Preto, encantei-me com a exuberância das paisagens montanhosas contrastada com as pequenas igrejinhas e casarios antigos, salpicadas aqui e acolá por entre os morros.
Mas, foi vendo Ouro Preto sob os delicados pinceis de Guignard que me dei conta do quanto o contorno emoldurante daquelas montanhas altíssimas estava me trazendo uma enorme sensação de conforto e bem-estar. E talvez porque Guignard também se sentisse acolhido lá é que pôde dar à sua pintura o ar ao mesmo tempo festivo e bucólico que conseguimos captar em suas telas.
E que enorme contraste foi voltar a Belo Horizonte e percorrer suas avenidas rápidas e enormes e avistar, de um lado condomínios de luxo e de outro, favelas e pessoas vivendo em condições desumanas.
As mesmas montanhas altíssimas, o mesmo horizonte belo, mas, quanto aos sentimentos, uma distância vertiginosa entre eles.
De um lado, o homem enraizado em sua terra; de outro, o desenraizamento total; o homem abortado e cuspido como resto, a ser triturado dia-a-dia pela construção de mais um Shopping Center, a grande Meca dos nossos tempos.
Sim, decididamente Minas Gerais é uma terra de contrastes.
Em Inhotim aprendi o que é, de fato, uma experiência.
Trata-se de um lugar maravilhoso do qual a gente não quer ir embora nunca mais. Fiquei muito intrigada com o que senti lá porque não conseguia definir ao certo o que é que era tão bom.
O conjunto harmonioso dos amplos jardins? Os lagos verdíssimos? As galerias de arte? Tudo isso junto? Mas, nenhum destes elementos sozinhos me ajudavam a precisar o que havia em Inhotim de tão interessante.
Pensei então que talvez fosse exatamente esta zona de indeterminação e, portanto, o convite à criação de novos sentidos que fizesse da experiência em Inhotim algo tão interessante.
E parece que eu estava certa.
Vim a descobrir depois que Inhotim é filho de um desastre moral: a ruína de um homem muito rico, explorador de minérios, que a certa altura perdeu tudo.
Por isso talvez eu tenha sentido que havia um desespero em Inhotim: o desespero em poder recriar um mundo bom, uma espécie de novo Éden, mas agora sem pecado nem queda.
Um novo Éden em que um Deus bondoso não tivesse, como no primeiro, criado filhos fracos de espírito e carne e tão afeitos às tentações, mas perfeitos e incorruptíveis como ele próprio.
Em suma, um novo Éden confiante na plena capacidade de inteligência humana; um lugar de celebração da vida e do ser humano, da arte e da cultura, do pensamento lúcido e da beleza, tal como Nietzsche concebera certa vez.
Sai de lá pensando por que é tão difícil se manter em constante estado de espírito Inhotim. E a resposta é que talvez um homem precise ser muito forte e muito competente para aguentar não estragar sua alegria de crescer e a esperança de sustentar os próprios sonhos, e isso a clínica psicanalítica ensina, muito poucos conseguirão.
O fato de Inhotim estar tão próxima de Brumadinho tornou este trecho da viagem particularmente difícil para mim, pois senti falta de um espaço em que eu pudesse ir fazendo a transição entre estes dois lugares tão contrastantes, mas infelizmente não pude contar com este recurso.
Estava vivendo, então, uma cesura radical e profunda: uma ilha de desenvolvimento em meio à estagnação total.
Penso agora com alguma alegria em quem está tecendo a ponte: jovens sonhadores de Brumadinho que Inhotim emprega como seus colaboradores e que assim podem finalmente sonhar o futuro.
E lá vão eles, todos os dias pra lá e pra cá, caminhando com seus próprios e rápidos pés; pés de quem sabe que cada minuto da vida é valioso e que não há tempo a perder.
Ao percorrerem o caminho Brumadinho-Inhotim a cada dia costuram as bordas do vazio, do tédio, do medo e da ignorância com os fios dos sonhos, em busca de realizarem seus próprios Inhotins.
Escapam assim da perigosa anti-realização de Brumadinho, que, coisa curiosa, não me deu pena e sim raiva.
Mas, de onde vinha esta violência? Seria a violência dos revoltosos, talvez? Mas, não! Não havia sinal de revolta ali. Tudo o que havia eram uns tímidos cartazes religiosos dizendo “Deus reza por nós” e a dignidade da pobreza humana comprada ao preço de mil reais por mês, por cada morador da cidade, o que eles pareciam agradecer.
Seriam então os mortos? Os duzentos e quarenta e três mortos que me assombravam e contra cuja realidade mortífera eu me rebelava? Mas isso também não me convencia.
Afinal, eu não tenho medo da morte e já ajudei algumas pessoas a morrerem. Portanto, a realidade da morte nunca me gerou revolta e sim piedade.
Mas, então, onde eu podia me fiar em busca de elementos para entender o ódio que eu sentia? E a resposta só me veio um tempo depois e ela estava em um caminhão.
Sim, era de um caminhão enorme que passava pra lá e pra cá e que parecia perfurar o meu cérebro com seus sons horrorosos que eu tive tanto ódio. E era contra ele que eu queria me lançar. Mas ele era tão grande e eu tão pequena…
Me dei conta então, de que era contra a dor da impotência que eu me rebelara com algum heroísmo. Era, portanto, um ódio mudo e impotente o que eu tentava expressar através do meu sofrer.
O ódio dos pequenos contra os grandes, dos inocentes contra os brutos, dos frágeis contra os poderosos, das crianças contra os adultos.
Mas esta dor muda e quase insuportável eu tive que elaborar sozinha. Através dela cheguei a compreender em profundidade, tempos depois, o sentido inaugural da vingança que é a fúria impotente do agredido contra o seu algoz, a quem quase nunca se pode fazer um mal efetivo por se ser mais fraco que ele.
Assim, aprendi em Brumadinho, ao preço de horas terríveis de angústia, que a fúria muda pode matar alguém, e o que o morto nunca é aquele que merecia morrer. Lei sórdida esta da vida.
Não agradeço ao caminhão por esta amarga aprendizagem. Na verdade, ele não devia existir, pois só faz macular a inocência das coisas. Mas ele existe. E não há nada que se possa fazer contra ele a não ser aprender a se desviar, o que já é um estrondo.
Quem quiser esmagá-lo de frente, será morto. Como Tiradentes, que achou que podia derrubar o rei e acabou perdendo a cabeça.
Prefiro ser Copérnico. Minto e me faço de boba, digo que sou estúpida, quando na verdade, sou é muito esperta. Preservo minha cabeça e minha vida porque sou mais útil e irritante viva do que morta!