Recentemente estreou no cinema o filme “Minhas mães e meu pai”, filme americano dirigido por Lisa Cholodenko.
Trata-se da história de um casal de mulheres homossexuais que, em busca de experimentarem a maternidade, recorrem a um banco de esperma, a partir do qual, são gerados dois filhos, cada um por uma mãe: a menina Joni (gerada por Nic) e o menino Laser (gerado por Jules), ambos do mesmo esperma (ou seja, do mesmo pai).
O filme inicia com Laser e Joni adolescentes, ele um menino “meio sem rumo”, que buscava em seu amigo machão e pouco sensível a figura masculina que não tinha em casa. Joni, muito parecida com a mãe, era uma adolescente determinada e inteligente, além de muito segura de si.
Neste momento de uma certa “crise familiar”, Laser (o único homem da casa) pede ajuda à irmã para encontrarem o seu pai biológico. Vale ressaltar que é Laser e não a irmã (parecendo muito auto-suficiente até o momento) que pede socorro à figura masculina (pai), provavelmente sentindo que suas bases identitárias poderiam começar a ruir, com a ausência de uma figura masculina que lhe desse algum ancoramento e limites. Lembro a vocês que ele estava começando a se envolver com drogas pesadas, o que aponta para este desmoronamento típico da adolescência, que começava o ameaçar.
A partir daí o filme se torna lírico: o encontro de Laser e do pai é difícil no começo (como todo começo, aliás). O menino testa os limites deste e questiona se ele o desejara ou se vendeu seu esperma por alguns milhares de dólares. Movimento típico e natural a toda criança que, em algum momento da vida, irá fazer pesquisas sobre a sua origem, sobre se foi desejada ou não.
E aqui já se coloca uma questão séria que merece profundas discussões: como ficam estes bem-vindos questionamentos sobre a minha origem se eu não posso ter acesso à quem doou o sêmen para que eu fosse concebido? (quero lembrar que os doadores de sêmen têm sua identidade preservada)
Para a menina, a chegada do pai também é bem-vinda porque , a partir desse encontro, ela começa a ter um contato mais intenso com a sua sexualidade (em uma festa tem coragem de beijar o menino de quem sempre gostou), algo que até então ficara represado e intensamente sublimado em atividades intelectuais.
Não quero dizer com tudo isso que uma família com esta, formada por duas mulheres, é danosa ao desenvolvimento! Ao contrário, acho que ela é perfeitamente possível. O que não concordo é que se possa conceber a retirada do pai da jogada sem que isso tenha conseqüências importantes para o desenvolvimento dos filhos, algo que o filme retrata de forma muito interessante.
Nic, por mais que fizesse a função paterna com presteza, não era o pai, era a mãe (inclusive Jaser e Joni a chamavam assim).
Ou seja, esta família sofria de um único mal: ter mulheres fálicas no comando (Nic e sua filha), ficando Laser e Jules (figura mais sensíveis) desalocadas e desvalorizadas. Só pra exemplificar: Jules, ao contrário de Nic, não conseguira ser uma pessoa brilhante em sua carreira. Sua vocação era para a terra (símbolo da fertilidade e dos afetos) e isso não era muito valorizado por Nic. Ao encontrar o pai biológico de seus filhos, pôde se sentir realizada já que ele valorizava o seu trabalho, por ser, ele próprio, uma pessoa muito criativa e fértil.
Reconhecendo o seu talento e sensibilidade com as “coisas da terra”, ele a convida para cuidar do jardim de sua casa que estava bastante descuidado. A partir destes encontros freqüentes acabam se envolvendo sexual e afetivamente e se sentem vivos novamente.
Então, penso que o filme não faz uma crítica às famílias de homossexuais femininas, mas sim à uma postura tipicamente atual da mulher fálica moderna, representada por Nic e por sua filha: elas são auto-suficientes, brilhantes e comandam tudo ao seu redor, valorizando sobremaneira os aspectos intelectuais e a ação em detrimento dos afetos e emoções, ou seja, do campo do sentir. Diante disso, aspectos essenciais da personalidade, tal como a capacidade de fecundar e de fertilizar, numa relação criativa (hetero ou homossexual, não importa), se perdem tornando as protagonistas empobrecidas e sem vida.
Sinal de alerta:
Fica então um sinal de alerta para todos nós, filhos da Modernidade: Não viveríamos hoje um momento histórico em que nós mulheres, assim como os homens, temos valorizado muito aspectos como brilhantismo profissional, sucesso e ação em detrimento de vivências menos barulhentas, mas nem por isso menos necessárias, tais como a capacidade de se recolher, de entrar em contato com os nossos sentimentos e do cuidado mútuo?
Outra questão para refletir: Será possível mercantilizarmos o sêmen masculino, tal como se compra uma bolsa ou sapato, “apagando” ou negando a existência de seu doador, figura esta que consciente ou inconsciente fará parte da história de vida desta criança que será gerada “in vitro”? Quais as conseqüências desta postura tão onipotente que comporta fantasias de auto-geração, renegando a participação e importância de um outro que não eu mesma?
A meu ver é isso que o filme questiona e não propriamente a família homossexual. Mesmo porque mulheres fálicas e poderosas que destituem o homem de suas funções elementares estão presentes também em famílias heterossexuais.
E que tipo de crianças e jovens estamos criando com tudo isso?
Penso que é nesse caminho que as discussões atuais sobre família devem ser feitas e não aquelas que nos fazem perder tempo discutindo se a família homossexual é mais ou menos danosa que a hetero. As duas podem ser (ou não) dependendo de como o casal consegue ser criativo em suas diferentes funções!
E no caso da Adoção?? O questionamento fica ainda mais complexo..
Cara Tatiane. Antes de mais nada, obrigada pelos comentários. É muito gostoso sentir que um texto meu despertou em você a curiosidade sobre o assunto.
E você tem razão: as discussões sobre a família homoparental (família formada por dois homens ou duas mulheres) são complexas! Incluvive o meu tema de doutorado, defendido no final de 2011, foi exatamente sobre as famílias homoafetivas!
Em parte, isso se deve ao fato de que no Brasil ainda são raros os casos de adoção legal feita pelos dois membros do casal homoafetivo, já que esta ainda não é uma prática permitida no nosso país (ao contrário de países como o Canadá e França, pioneiros nas questões de família homoparental). Apesar de existirem muitas famílias de homens e mulheres com filhos no Brasil, estas famílias não estão amparadas pela lei e, portanto, não tem visibilidade social.
Do ponto de vista da Psicanálise, como eu discuti no artigo, é importante que uma criança seja cuidada por um casal (hetero ou homo) que desempenhe funções diferentes e complementares. Quando eu falo em funções, quero dizer não somente do “papel social” de pai ou mãe, mas de funções mentais diferentes – uma mais ligada ao acolhimento e conteção (função materna) e outra ligada à capacidade de ação sobre o mundo (função masculina).
No caso da adoção, como você havia dito, penso que também é importante que a criança adotiva (seja ela adotada por um casal hetero ou homo, não importa) tenha condições de ter acesso à sua história passada, ao modo como chegou ao mundo. Em suma, essa criança deve contar com pessoas capazes de contar a ela como o foi que ela chegou até a aquela família e como foi desejada pelos pais adotivos. Muitas famílias ocultam da criança o fato de ela ser adotiva e isso é um grande erro, já que, como sabemos, o inconsciente registra todas as nossas vivências, desde as intra-uterinas!
Então, eu realmente acho que a adoção é um processo muito delicado e complexo e deve ser realizado com todo o cuidado e orientação e isso se aplicam às famílias em qualquer configuração – monoparental, “heterossexual”, homoafetiva, etc..
Bom, escreva mais sobre o que você pensa sobre a questão. Quem sabe não formamos um grande fórum de discussão sobre o assunto?
Abraços
Ana Laura Moraes Martinez
Psicóloga clínica / Professora Doutora