Em uma entrevista exibida em meados de 2012 a atriz Camila Morgado que, na época ensaiava a peça “Palácio do Fim”, dirigida por José Wilker, conta sua difícil e dolorosa experiência nos ensaios.
Sua tarefa era encarnar a figura de Lynndie England, uma das onze militares julgadas e condenadas pela corte marcial dos Estados Unidos, em 2005, pelas violentas e atrozes torturas cometidas contra prisioneiros em Abu Ghraib (Bagdá), durante a ocupação do Iraque.
Questionada sobre qual estava sendo sua maior dificuldade durante os ensaios, ela descreve seus sentimentos da seguinte forma:
Ao encenar aquilo, que eu sabia ter sido real, eu tentava, de alguma forma desesperada, encontrar alguma bondade naquela pessoa, algum motivo para ela ter feito aquelas terríveis atrocidades. Era como se eu não pudesse ficar perto de todo aquele mau. Acho que fazia isso porque assim conseguia algum tipo de identificação com a personagem. Mas, o Zé (José Wilker), disse-me algo que eu nunca mais esqueci. Ele me disse que eu não podia fazer isso porque aquela seria eu. Assim eu estava colocando algo de mim na personagem. Aquele olhar bondoso, compreensivo era meu e não dela. O que eu tinha que fazer era tentar me aproximar ao máximo da realidade daquela situação, ficar em contato com a pura maldade expressa naqueles atos terríveis sem “dourar a pílula”. Estes foram tempos muito difíceis para mim.
Esta “necessidade de dourar a pílula” de que nos fala Camila pode ser vista, de forma geral, em quase todo tipo de produção artística humana, de filmes a histórias infantis (pelo menos nas mais modernas). Estou me referindo à situação, que muito nos acalma e alivia, de que no final, o mocinho sempre vence o bandido, o bem sempre vence o mau. Com isso, nós podemos ir embora felizes e aliviados, nutridos pela esperança de que, no final, a bondade prevalecerá sobre a maldade.
Mas, será que é assim mesmo?
O mal-estar de Camila nos dá pistas neste sentido. Para os seres humanos – sobretudo para aqueles que desconhecem as forças demoníacas que habitam o seu mundo interno – ficar em contato direto com a maldade humana, que está dentro de cada um de nós e também no outro, é algo muito indigesto e incômodo. Provoca angústia, mal estar, revolta e dor mental. Daí a necessidade da atriz de “dourar a pílula”, emprestando à sua personagem sanguinária, algo de sua própria bondade.
É como se ela dissesse a si mesma, com maior ou menor consciência disso: “É insuportável para mim enxergar o que há de pior no ser humano. A pura maldade, o gozo sádico com a tortura de um ser humano sobre outro, teoricamente seu igual é algo que minha mente não pode conceber.”
No mês passado fui dar aulas a uma classe de psicólogos, em um curso de pós-graduação. Papo vai, papo vem, caímos nesta indigesta questão: a de que somos, em essência, seres cruéis, violentos e sádicos – uns mais que outros. Uma das alunas, ainda precisando se defender desta visão tão dolorosa, comentava, de modo revoltado e sofrido, sobre sua indignação frente a pais assassinos, displicentes e violentos com seus filhos. Esta, provavelmente, é uma das verdades mais dolorosas para nós: a de que pais e mães podem ser profundamente cruéis com suas crianças. Não é assassinato mental o que Laio e Jocasta cometeram contra Édipo? E a madrasta da Branca de Neve? Porque será que ela não pôde comparecer na história como sendo a mãe da jovem menina? Seria isso chocante demais para nós? Acho que sim. Penso que isso é provavelmente tão doloroso para cada um de nós por que nos faz considerar que não fomos só amados por nossos pais e mães, mas, em muitos momentos odiados por eles.
Infelizmente a filosofia, desde Aristóteles, tendeu a discutir esta questão moral de um modo insípido e inodoro. Aristóteles, por exemplo, acreditava que a bondade era aprendida pelo hábito. Dizia ele: “Quanto mais um ser humano praticar o bem, melhor ele será. E quanto mais ele praticar o mal, mais vicioso será”.
Do ponto de vista pragmático e fenomenológico, esta afirmativa está correta, mas ela nos leva a um beco sem saída, pois deixa em aberto a questão fundamental: De onde vem a bondade? E, de onde vem a maldade? De onde vem o amor? E, de onde vem o ódio?
De onde vem aquele sentimento maléfico que sentimos no olhar ou no tom de voz de alguém comentando que “sua roupa é muito bonita e você está super bem”? De onde vem o ódio expresso pela boca daquela torcedora, chamando de macaco, com gozo e ardor, o jogador negro? De onde vem o prazer irresistível da fofoca? E, de forma ainda mais grave, de onde vem o prazer sádico de se torturar e matar alguém?
A psicanálise aponta: Vem de dentro. Nós nascemos, constitucionalmente, dotados da capacidade de amar e de odiar. Alguns são mais dotados de capacidade de amar que outros. Estes acabam por sucumbir aos prazeres mortíferos do ódio e da destrutuvidade (sim, há prazer nisso!).
Shakespeare, em uma passagem belíssima de “Rei Lear”, buscando compreender o mistério desta profunda questão – a de porque alguns seres humanos são predominantemente bons e outros maus – diz:
Deve ser por causa das estrelas a diferença de temperamento dos seres humanos. Pois, mesmo entre dois irmãos, gerados pelo mesmo pai e pela mesma mãe, quanta diferença há.
Este trecho é lindíssimo porque nos lança diretamente no misterioso da questão: de onde vem o temperamento humano? De onde vem a capacidade de perdoar? E porque algumas pessoas nunca conseguirão experimentar isso na vida?
No caso da peça, porque a amorosa Cordélia, mesmo tendo sido renegada pelo pai em sua necessidade de demonstração falsa de afeto, ainda assim o perdoa e cuida dele em sua loucura e velhice? E porque suas duas outras irmãs, consumidas pelo ódio e pela fúria narcísica, enredadas pelas seduções e pelas ilusões da bajulação e da cobiça, não respeitam a sagrada velhice do pai (que representa, em última instância, a sabedoria humana atingida na aurora da vida) e, ao final, se matam envenenadas pelo próprio ódio?
São questões para as quais, conforme aprendemos com Shakespeare, não há respostas lógicas. Trata-se de algo misterioso, vindo das estrelas. Penso que é disso que deriva nossa condição humana: deste quantum de mistério e de enigmático que cada ser humano carrega dentro de si.
E para terminar, arremato com a reflexão: o bondade é mais poderosa, mais potente que a maldade humana?
É possível educarmos (utopicamente) todas as crianças de modo que elas aprendam a amar e respeitar o seu semelhante? É possível, pela psicanálise, em todos os casos, superar o ódio pelo amor?
Nem sempre. Acho que esta é uma visão ingênua da vida que não nos leva muito longe. Inúmeras crianças se tornarão adultos cruéis e violentos porque isso depende mais da natureza do que da educação que, em se tratando de humanos, tem sérios e profundos limites; embora também seja verdade que, sem estas instituições sociais (família, escola, sociedade) seríamos muito mais bárbaros do que somos. Inúmeras pessoas abandonarão o trabalho árduo e doloroso de busca pela verdade que a psicanálise oferece porque já foram consumidas pelas sedutoras malhas da mentira, da sedução e da arrogância. Culpa do terapeuta? Claro que não. Seria muita onipotência pensar assim.
Esta é uma das verdades mais trágicas e dolorosas do ser humano: nós somos seres livres e dotados de livre-arbítrio, mas cada um de nós só pode ir até onde sua natureza permite. Não compartilho da ideia de que alguém é mau ou bom porque quer. Em inúmeras situações humanas, não há escolha possível, embora isso não isente as pessoas de assumirem as responsabilidades pelos seus atos, bons ou maus.
Para terminar, lembro-me do comentário esperançoso de um conhecido sobre Lúcifer, o anjo caído, que foi expulso do paraíso porque, em um rompante de ódio e inveja, quis ocupar o lugar de Deus. Dizia ele, cheio de esperança: “Nunca pensei que haveria essa possibilidade – a de alguém conversar com Lúcifer para tentá-lo fazer desistir da ideia vingativa de competir e de ser Deus”. Fiquei tempos pensando sobre isso. Se, neste caso, Lúcifer vai humildemente “baixar a guarda” e se render ao amor, não sei? O que eu sei é que é preciso muita coragem para chegar, nem que seja só um pouquinho, perto dele.