O seu olhar melhora o meu.

download (11)Esta manhã, impregnada por um profundo sentimento de beleza e poesia diante da vida que, segundo eu pensava naquele momento, só é possível de ser resgatado dentro de nós pelo encontro com o outro (analista, parceiro amoroso, pais internalizados), comecei a prestar atenção na música que tocava na rádio:era a música chamada “O seu olhar” dos Tribalistas, cujo refrão diz o seguinte: “O seu olhar melhora o meu”.

Imediatamente lembrei-me, diante deste belo refrão, de outros dois fragmentos de memória que vivenciei em sala de aula nesta semana: (1) um aluno meu, bastante deprimido e amargurado, contava-me sobre sua descrença nos encontros humanos e dizia, cheio de ódio, que nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. (2) outro aluno me questionava sobre a possibilidade de fazermos auto-análise, enquanto eu observava, entristecida, sua incapacidade e seu medo de estabelecer vínculos, numa busca narcísica e onipotente por se bastar sozinho!

Diante destes pensamentos-relâmpagos, resolvi escrever este pequeno texto na tentativa de elaborar estes sentimentos que pulsavam dentro de mim: um de vida e outro de morte.

Pulsão de vida e de morte:

Todos nós somos invadidos em algum momento por sentimentos de desesperança, de descrença e de ódio por  nós mesmos,pelos outros e pela vida. Melanie Klein define estes maus sentimentos, fruto da inveja e do ódio, que nos invade e destrói toda a capacidade de sonhar e de construir relações conosco e com os outros, como um derivado direto da pulsão de morte que, segundo ela, faz parte da nossa constituição psíquica.

Segundo ela, temos que lutar a vida toda contra este potencial de destruição interna que nos persegue, silenciosamente. E este potencial destrutivo interno pode se apresentar de diversas formas: na crença de que o mundo está cheio de maldade e de ódio (quando projetamos nossa pulsão de morte), de que nós não temos qualquer valor diante da vida (sentimentos melancólicos), de que as relações não valem a pena e de que o outro só serve pra nos encher a paciência.

Todos estes são derivativos da pulsão de morte que visa destruir e “desligar” qualquer possibilidade de vinculação afetiva, de nós com nossos bons objetos ou de nós com os outros.

Numa relação amorosa este tipo de sentimento é muito comum quando, por exemplo, sentimos que o outro só está lá pra nos afrontar ou nos tirar do sério. Mas, se relacionar não precisa ser assim.

Elaborando nossa pulsão de morte:

O que ocorre nestes casos é que, estando mobilizados diretamente pela nossa destrutividade interna, passamos a ver os outros e o mundo de forma distorcida, em preto e branco. Tudo perde a graça e o sentido e a única saída que almejamos é ficarmos sozinho.

Só que aí é que está o engano. As pessoas que sentem que é o outro que nos atrapalha não sabem que o que está atrapalhando o seu desenvolvimento não é o outro, mas são estes sentimentos de ódio que a invadem e atacam sua mente, deixando tudo ruim.

Ao contrário, quando os sentimentos de vida predominam em nossa mente podemos sentir e constatar que o olhar do outro nos melhora e não nos piora!

O seu olhar melhora o meu!

De que modo o olhar do outro pode melhorar o meu? Vamos parar pra refletir um pouco sobre isso.

É simples: nós não temos capacidade de nos enxergar tal como somos porque muitas vezes estamos asfixiados por confusão interna, sentimentos de caos e de angústia. É só o outro, que pode ser nosso parceiro amoroso ou nosso analista, que poderá nos dar a bússola de como estamos sendo, obviamente de forma amorosa e compreensiva.

Pensem no olhar apaixonado da mãe pelo seu bebê: não é este olhar amoroso que vai melhorar o olhar do bebê sobre ele mesmo? Que vai transformar seu desespero em algo suportável e não terrorífico? Quem nunca se sentiu amedrontado ou angustiado e não almejou, ardentemente, o abraço caloroso ou a compreensão silenciosa de alguém? É esta a mágica do encontro humano: é só o outro que pode nos acolher desta forma.

Como eu disse, quando estamos em contato com sentimentos amorosos dentro de nós e vemos o outro também de forma amorosa não há porque lutar ou se sentir perseguido pelas pessoas. Se nos sentimos amorosos diante da vida imediatamente passamos a ver o outro de forma amorosa e, portanto, parte essencial  da nossa vida.

O problema é que quando o ódio predomina sentimos este olhar do outro como um olhar crítico e não como um olhar amoroso. E é isso que dificulta as relações humanas. É isso nos afasta das pessoas e de nós mesmos, nos colocando num perigoso círculo vicioso que obedece a seguinte lógica: 1) Eu não confio na minha capacidade de amar porque estou cheio de ódio; 2) Eu não confio em ninguém; 3) Eu me basto.  As pessoas só me atrapalham.

Este é o passo triste que leva ao narcisismo, à onipotência e, conseqüentemente, à incapacidade de poder usufruir da beleza e da poesia da vida.

 

6 comentários em “O seu olhar melhora o meu.”

  1. Intuitivamente, posto que sou completamente leigo na área de psicologia, mas como gosto muito de me relacionar com pessoas e suas idéias principalmente, o que de certa forma me capacita a ter algum mínimo conhecimento sobre o Ser Humano, senti nessas idéias muito de coerência, de verdade, achei muito Humano todo o relato, desde o seu princípio, quando o refrão de uma música ( que na verdade pode ser alguma das infinitas traduções de amor) te fez trasbordar de amor e escrever este texto, até o final quando de certa forma vc coloca seus dois alunos na mesma condição de insatisfação diante da vida e das coisas.
    Mas como nenhuma verdade é completamente absoluta, me cabe aqui expor o meu ponto de vista com relação aos sentimentos de seu segundo aluno, e acrescentar (humildemente) que caso ele tivesse alcançado essa busca \\\\"narcísica e onipotente\\\\" que é como chamou a necessidade que algumas pessoas tem de ser independentes sentimentalmente de outros (isto não quer dizer efetivamente que não possam amar ou que não amam) até mesmo para ter plena condição de expressar o olhar que melhora o outro com verdade e amor incondicional, certamente ele seria um belo exemplo de antagonismo Humano dentro de sua sala de aula, e suas idéias teriam uma outra tônica, despertada pelo olhar que melhora , ficando de certa forma evidente que o olhar que melhora , pode não piorar, mas alterar o seu estado, e talvez seja por isso que ás vezes evitamos alguns encontros com os outros(talvez um pouco egoísta) mas se olhar pelo prisma de que nos dias de hoje é muito complicado manter esse olhar que melhora , para quem efetiva e verdadeiramente amamos e que mais do que isso melhora o nosso olhar, então eu finalizaria dizendo que só temos e recebemos aquilo que damos, então cada um que procure dar muito amor para recebe-lo de volta e dessa maneira diminuir e muito essas invasões de sentimentos de desesperança e ódio!
    Com muito Amor – Célio

    1. Olá Célio. Obrigada pelo seu comentário e interação com o meu texto.

      Gostei muito de ler suas impressões.

      Abraços

      Ana Laura Moraes Martinez
      Psicóloga clínica / Professora Doutora

  2. Olá Ana,

    Adorei seu texto, na verdades seus textos, o site todo!
    Incrível a forma como expõe suas idéias, nos incentivam a continuar lendo e buscando mais informações.

    Mas como sair no narcisismo? Ou isso vai e volta diante das situações?

    1. Olá Júnior. Que bom que gostou do conteúdo. Fico muito feliz quando minhas ideias e inquietações despertam as inquietações de alguém. Por que, na verdade, acho que são inquietações humanas e universais, não é?

      Bem, você me pergunta como sair do nosso narcisismo e eu acho que você próprio responde que “sair do nosso narcisismo” o tempo todo não é possível porque o narcisismo, ou seja, o investimento de energia e libido no próprio ego faz parte da nossa constituição e, aliás, é super necessário para que o bebê sobreviva no início da vida. É isso que se chama narcisismo de vida. Ocorre que quando ficamos muito investidos narcisicamente, ou seja, quando não vemos o outro como alguém inteiro, mas como uma mera extensão nossa, aí sim a coisa fica complicada. E isso é mais comum do que pensamos. Sabe aquela coisa de às vezes termos certeza do que o outro pensa, sem antes perguntar a ele? Então, narcisismo é isso. Relembrando o mito de Narciso, o sábio disse à mãe de Narciso que ele poderia viver muito tempo, desde que não visse a sua própria imagem. Acho que o mito é belíssimo porque nos lembra como é fácil ficarmos encantados com nossa própria imagem e darmos as costas ao objeto que, no caso do mito, era Eco. Acho, então, que este é um movimento constante do humano, entre o narcisismo (fechamento em si mesmo) e o social-ismo (ir em direção ao outro, ou seja, estar em um vínculo com alguém)… E sabe porque Narciso ficou tão ameaçado com Eco? Porque provavelmente se vinculando amorosamente a ela, ele teria que se deparar, necessariamente, com a sua fragilidade e dependência. É isso, eu penso, que muitos seres humanos não conseguem suportar… Espero ter conseguido estimular novas reflexões.

      Abraços

  3. Profª Ana,

    Adoro ler suas publicações, como também assistir as suas aulas.
    Fico contente pelo fato de entrar em contato com a psicanálise através de uma professora sensível , coerente e ampla.
    Só o fato de , através de uma frase de música, você conseguir expressar , de modo carinhoso, teorias da psicanálise, já é um privilegio ter te conhecido.
    parabéns.

    Abraços

    Marisa Rossi

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