Conforme prometido, irei me debruçar agora mais profundamente na obra “Os irmãos Karamázovi”, publicado por Fiódor Dostoiévsky em 1879. Como disse em texto anterior, tenho ficado encantada com a capacidade deste escritor russo – o primeiro a escrever romances psicológicos em que a alma humana é dissecada em profundidade – a mergulhar nas paixões humanas.
Este livro, talvez mais do que “Crime e castigo”, retrata o homem tal como ele é: ser pulsional e apaixonado, primitivo, às vezes cruelmente sórdido e vil, mas que também aspira a uma existência sublime, adquirida por meio da busca pela verdade e pelo reconhecimento da nossa condição miserável, paradoxal e ambígua.
Segundo tradutores da obra, Karamázov advém de Kara, que significa castigo ou punição e do verbo mázat que significa fazer algo não acertado, sujo ou incerto. Em uma aproximação etimológica, portanto, o sobrenome que inscreve a família Karamázov significaria algo como “aquele que, com seu comportamento desacertado, intempestivo e incerto, acaba gerando a própria punição e desgraça”.
A narrativa, que tem na figura do herói Alieksiéi seu personagem principal, gira em torno do patriarca Fiódor Pávlovitch Karamázov e seus três filhos: Dimítri, de sua primeira mulher e Ivã e Alieksiéi, nascidos do segundo casamento. Assim, descreve Dostoiévsky o patriarca:
Criatura vil e corrompida, ao mesmo tempo que absurda. Sabia arranjar perfeitamente seus negócios proveitosos, mas nada mais. Começou quase do nada: era um modesto proprietário, gostando muito de jantar em casa dos outros, com fama de parasita. E no entanto, ao morrer, possuía mais de 100.000 rublos em metal sonante. Isso não o impediu de ser, durante sua vida, um dos piores malucos de nosso distrito. Repito-o, não se trata de estupidez – a maior parte desses malucos é bastante inteligente e astuta – mas de extravagância específica e nacional. (p. 13)
Dimítri, talvez o filho mais parecido com o pai, será acusado de tê-lo assassinado, uma vez que ambos disputavam o amor da mesma mulher: Grúchenhka. Além disso, Dímitri acusava o pai de não lhe dar a herança devida. Assim como Fiódor, Dímitri representa no romance a nossa humanidade, no sentido mais puro deste termo: humanidade que se entregam às paixões, chegando a cometer os atos mais vis e sórdidos para ter aquilo que deseja. Paixão, luxúria e dinheiro os movem, não porque sejam propriamente dotados de caráter duvidoso, mas porque, conforme nos ensina Dostoievski, quando se trata de dinheiro e paixão carnal o ser humano é capaz de expor seus sentimentos mais bestiais ligados à cobiça, à inveja, à competição, à ganância e à luxúria. Não à toa que Freud asseverou que os dois assuntos sobre os quais o ser humano se mostra mais pudico e menos capaz de honestidade são sexo e dinheiro.
Mas, é importante frisar que, a respeito destes dois personagens, conforme sublinha bem o escritor, não se trata deles serem estúpidos ou vilões, no sentido de cometerem maldades sem qualquer crise de consciência. Daí a nossa identificação com eles. Dímitri, por exemplo, demonstrando toda sua humanidade em seus conflitos de consciência, demonstrou-se incapaz de usar um dinheiro conseguido por meio de mentiras com a primeira pretendente por não tolerar o julgamento alheio e próprio de ser ladrão. Deixa claro, ao contrário, que foi movido pela paixão à Grúchenhka e não por falta de caráter.
Por isso, ao irmos acompanhando estes personagens, suas peripécias e confusões, ficamos absolutamente identificados com eles. Sentimos que eles poderiam ser qualquer um de nós (provavelmente o são) que, quando tomados por nossas paixões, que nos cegam e impedem de pensar deixando-nos até um pouco idiotas, somos capazes de cometer as piores trapalhadas e confusões.
É neste clima apaixonado e impulsivo que o crime de parricídio é cometido. O principal suspeito é Dímitri que, como eu disse, disputava o amor de Grúchenhka com o pai e também o odiava pela sua mesquinhez.
O elemento edípico nesta narrativa é evidente: pai e filho disputam o amor da mesma mulher que, em termos psicanalíticos, significa o amor da mãe. Além disso, há o elemento do dinheiro, da herança que pode ser interpretado a partir da dificuldade do pai Fiódor transmitir ao filho Dímitri sua herança, monetária e psíquica. Em suma, seu símbolo de masculinidade. De fato, talvez Fiódor nunca tivesse conseguido assumir sua identidade paterna, sentindo-se por isso sem nenhum sentimento de responsabilidade para com seus filhos. O único que lhe despertava admiração e interesse era Alieksiéi, considerado por ele um santo, alguém que estava acima das misérias humanas.
Alieksiéi fora estudar em um mosteiro. Ou seja, encontrou na via religiosa (algo que é comum nas obras do autor) a resposta para as mazelas e misérias humanas.
E é este o ponto que quero enfatizar em minha análise.
Ao longo da obra, vamos sendo informados pelo narrador que, apesar da acusação ter recaído sobre Dímitri – ele estava lá no momento do crime e tinha motivos de sobra para querer matar o pai e, inclusive, já havia dito isso várias vezes – o assassino não teria sido ele, mas um filho bastardo e criado de Fiódor, a mando de Ivã (o filho intelectual).
Todo o julgamento de Dímitri (aliás, belíssimo) está centrado em dois argumentos fundamentais. Da parte da defesa de Dímitri o argumento era: pode um homem ser julgado pelos seus desejos? Desejos podem ser tomados como atos? E mais: que filho não desejaria matar um pai como Fiódor?
Da parte da acusação: se todo filho gerado por um pai irresponsável e cruel, como era Fiódor, se sentisse autorizado a matar, tal situação não culminaria em um parricídio em massa?
E a discussão vai mais além, chegando ao tema da religiosidade. Ivã havia publicado um artigo em que declarava, em tom categórico, que não há nenhuma lei natural que obrigue homens a amarem seus semelhantes. Apenas a lei religiosa. E, na medida em que o homem descobre isso, não há mais nada que lhe possa ser considerado amoral. Tudo, a partir daí, seria permitido, inclusive a antropofagia e o parricídio.
Trocando em miúdos: o que somos capazes de realizar quando não há mais leis sociais que nos segurem e coloquem um limite em nossos desejos?
Ou seja, Ivã percebe, pelo olhar de Dostoiévski, que o pensamento religioso que diz “Não matarás pai e mãe” existe para conter nossos desejos assassinos, parricidas e matricidas.
A argumentação é interessante e aqui encontramos um ponto de contato com a psicanálise.
Para Freud, dentro do inconsciente de cada um de nós, habitam desejos de matar pai e mãe para ficar com o genitor do sexo oposto.
Desta perspectiva, todos nós, assim como Dímitri, seríamos assassinos. Só que neste caso, mais uma vez, a solução do impasse narrativo é conseguida pela via da religião. Alieksiéi, o filho religioso que serve para redimir os pecados familiares (e provavelmente os dele próprio) acredita na honestidade e na não culpabilidade do irmão Dímitri. Ou seja, ele lhe diz: “Eu acredito que, apesar de você ter desejado matar o pai, não o fez. Por isso, o absolvo desta culpa.” Com isso, Dímitri, apesar de ter sido condenado, foge com sua adorada Grúchenhka, realizando, portanto, o desejo proibido pelo inconsciente.
Saída interessante para o conflito neurótico, mas não para a elaboração do desejo. Pois, como sabemos, o convite feito pela psicanálise não é pela absolvição, mas pelo conhecimento. Já disse em texto anterior que, a meu ver, a saída da absolvição religiosa sem passar pelo conhecimento gera tão somente a infantilização do homem: troca-se a figura do pai pela do padre ou de Deus.
A verdadeira coragem do homem trágico (isso talvez Dostoiévski tenha tido dificuldade em pensar) não está em se admitir culpado e expiar suas culpas inconscientes, mas em conhecer a fundo os seus desejos, considerados inconfessáveis pelo ego (eu ideal) e, partir deste conhecimento, resolver o que irá fazer com eles.
As pessoas pensam erroneamente que conhecer um desejo inconsciente, ou seja, colocá-lo em palavras, é o mesmo que realizá-lo. Mas, o que ocorre é o contrário: enquanto o desejo inconsciente não pode ser representado por meio de palavras, ele atua como uma força demoníaca dentro da mente e encontra como única saída possível a realização.
Assim como ocorreu na obra. Na medida em que os filhos de Fiódor não puderam narrativizar o ódio e o desejo assassino pelo pai, o assassinato concreto precisou ser realizado. Depois de realizado, a única saída possível é a expiação e a condenação, seja pela via moral ou concreta (ser preso e se dar mal no final).
Em uma análise o sujeito tem o privilégio (por isso Nietzsche dizia que a veracidade é um luxo!) de, em um contexto privado e íntimo, conhecer seus desejos inconscientes e colocá-los em palavras, livrando-se da compulsão demoníaca de ter que realizar aquilo que tanto deseja no inconsciente. Com isso o homem não se sente mais enredado em um destino para o qual caminha sem escolha, mas pode escolher o que irá fazer com o desejo infantil que agora lhe é conhecido, podendo, inclusive, utilizar sua força motriz, que antes vinha sendo gasta com repressões maciças, para realizar coisas mais sublimes e mais elevadas do ponto de vista humano por meio da sublimação.
Como conclusão: não há escolha possível para nós humanos. Ou conhecemos o que nos habita ou seguimos condenados pelo que chamamos de destino, sorte ou azar, forças divinas, ou seja lá o que for, à realizarmos aquilo que mais desejamos e que também mais tememos: nossos desejos sexuais infantis.
A profunda produção literária de Dostoiévski aponta também para algo fundamental: acessar verdades humanas, como também fazem os filósofos, somente pela via racional, sem que esta descoberta venha associada a uma experiência emocional é algo estéril. Não gera modificações na mente daquele que se põe a conhecer. Um exemplo claro disso são os filósofos: eles têm uma apreensão intelectual do que seja o inconsciente, mas muitos deles, que não fazem análise, nunca tiveram a chance de ver o inconsciente atuando neles próprios. Trata-se, de certa maneira, da manutenção de uma postura arrogante frente ao mistério e desconhecido da mente, com uma fantasia de que tudo pode ser sabido, dito e verificado pela racionalidade.
Por isso, muitas destas pessoas, mesmo tendo atingido níveis sublimes de elevação intelectual, acabam sendo marcadas por inúmeras tragédias pessoais com sofrimento psíquico intenso, enlouquecimento e mortes prematuras.