Esta semana foi noticiada uma reportagem que eu achei bastante curiosa.
Colônias de férias de crianças estão sendo proibidas, pelos pais, de contarem estórias de medo. O argumento dado por eles, segundo a reportagem, é que este tipo de estória pode traumatizar ou amedrontar as crianças desnecessariamente. O curioso é que, na matéria, o discurso dos pais era corroborado por um dos donos da colônia, que disse:
– É um período de férias, de curtição. Então, a gente só deve falar de “coisas alto-astral, só coisas pra cima” (sic).
O que podemos pensar sobre isso?
Primeiro, penso que há um sentimento de terror e de fragilidade generalizado nos pais e mães atuais. Acompanho com frequência em meu consultório o quanto os pais da atualidade têm se sentido frágeis psiquicamente para atender as demandas emocionais de seus filhos. Confundem compreensão e empatia com mimos, limites com rigidez, amor com chantagem. Não é incomum que os pais busquem um psicólogo ou analista para pedir conselhos, para ouvir do “especialista” se o que estão fazendo é certo ou errado. Sentem-se, eles próprios incapazes de se confrontarem com as dúvidas e angústias naturais e inevitáveis da difícil tarefa de cuidar de uma criança. Vão em busca de respostas prontas, mas, na verdade, precisam do auxílio do profissional para que se sintam mais fortes e confiantes para suportarem as dúvidas e incertezas que são inevitáveis ao próprio viver humano. Por isso Nietzsche disse certa vez que a resposta é a desgraça da pergunta. A graça da vida não está em respondermos às nossas perguntas, mas em podermos aguentar ficar com as dúvidas, com o mistério e com a incerteza inerente à vida. Uma criança precisa sentir que seus pais aguentam as incertezas da vida sem desmoronarem.
Não é a toa que um dos filmes indicados ao Oscar para este ano – Boyhood: da infância à adolescência – retrata exatamente o desenrolar do desenvolvimento de um menininho em uma família comum, com pais cheios de dúvidas, que acertam e erram, exatamente como é a vida. Acho que o gosto do público para este tipo de filme pode refletir uma carência das pessoas para aquilo que é a “vida como ela é”, feita por pessoas comuns, por seres humanos, cheios de dúvidas e falhas.
Mas, voltemos agora à questão do medo.
O medo é um sentimento inerente à nossa condição humana. Nós temos medo de coisas reais, mas temos muito mais medo das coisas que se passam dentro da nossa mente, do que desejamos e não sabemos. Temos medo do nosso desejo de que nosso pai desapareça para ficarmos com a nossa mãe ou temos medo de desejar que o nosso irmãozinho ou irmãzinha morra para termos toda a atenção da mamãe. Temos medo de realizarmos nossos arroubos de paixão infantil e perdermos o nosso pênis. Ou temos medo de já termos realizado nosso desejo e já termos perdido o nosso tão inestimável pênis. Temos medo do nosso desejo de ter um bebê com nosso pai. Temos medo de sermos punidos severamente por desejarmos tudo isso. Isso só para citar alguns dos temores que habitam nosso psiquismo.
Pois bem, e o que fazem as estórias de medo?
Elas ajudam os seres humanos a elaborarem, a colocarem em imagens e narrativas estes medos que sentimos não ter nome (pelo menos, do ponto de vista da lógica racional).
Os sonhos fazem o mesmo trabalho.
Por que sonhamos à noite? E por que precisamos das estórias de medo? E por que precisamos do mito, do cinema, da arte?
Por que todas elas são formas que o ser humano encontrou de colocar em imagens, de contar uma estória sobre o que nós desejamos e não compreendemos, sobre o que nós sentimos e não conseguimos representar.
Freud diz: “Os sonhos vestem psiquicamente o inconsciente”. Sem o sonho, sem as estórias de medo o contato com o inconsciente fica insustentável, insuportável porque o desejo é sempre algo da ordem do biológico, do puro pulsional, do irrepresentável.
As crianças gostam tanto de estórias de medo exatamente por isso. Inclusive, pedem para que sejam repetidas muitas e muitas vezes, sobretudo se o adulto conta com paixão e entusiasmo. Porque elas dão uma cara, uma feição àquilo que as crianças sentem, mas não conseguem expressar.
Além disso, por meio das estórias de medo as crianças fazem uma espécie de treino e preparação emocional para lidarem com seus medos internos e externos. Sem estes recursos, assim como o adulto sem o recurso do sonho, a criança fica fragilizada psiquicamente porque se sente à mercê dos seus temores e fantasias mais terrificantes. Penso na tragédia que é estarmos criando crianças despreparadas internamente para dançarem de perto com seus medos. Afinal, ao contrário do que diz rapaz na reportagem, a vida não é feita só de experiências “alto-astral”. Quem tem bastante coragem de olhar para a vida perceberá logo que a vida humana é muito difícil: temos que nos confrontar com perdas, com expectativas frustadas, com a morte e a finitude e com os nossos limites vários. Tudo isso faz da vida humana um grande e heroico desafio. Tudo isso faz a vida humana dar muito medo. Guimarães Rosa disse certa vez: “A vida é coisa que espanta.”
Por tudo isso o homem precisa da cultura, assim como precisa do sonho para poder sobreviver psiquicamente.
Há ainda outro elemento a ser sublinhado com relação às estórias de medo. Freud disse nos “Três ensaios” (1905) que o medo é uma fonte de grande excitação sexual para a criança, obviamente quando este medo não é muito excessivo, nem representa um perigo real para a mesma. Resumindo: as crianças sentem prazer sexual frente aquele “medinho”, aquele “frio na barriga” que vivenciam nas estórias de medo e suspense. Este é outro motivo para que elas peçam incessantemente para ouvir este tipo de estória.
Em suma, nós, como humanos, temos o direito de aprender a lidar com os nossos medos e desejos mais atávicos com estes recursos narrativos criados milenarmente. A sorte é que o humano é plástico. E se os pais não estão dando conta de seus próprios medos não elaborados – porque, no fundo, é esta a questão – a criança dará outro jeito de encontrar meios de simbolizar seus terrores, seja na brincadeira, com pais de coleguinhas que eles sentem mais disponíveis ou mesmo em uma análise.
Podemos compreender com isso que os pais atuais têm se sentido traumatizados, ou seja, com uma mente excitada pelos excessos: de medos não metabolizados, de informações destituídas de sentido e valor, de exigências superegóicas severas que retiram deles o prazer lúdico de aprender com uma criança e de achar graça de si mesmo por estar em dúvida ou confuso sobre o que fazer com aquela criaturinha que tanto depende de você, mas que um dia irá descobrir que você também sabe tão pouco e sente tanto medo…
Em parte penso que isso é reflexo de um contexto social perverso que destitui a importância do papel da tradição e dos valores, substituindo-os pelo papel do sujeito individual, cada vez mais solitário e perdido com suas próprias questões e demandas. O que quero dizer é que nossa sociedade tem se individualizado cada vez mais, as pessoas estão cada vez mais solitárias nas cidades, os pais e mães não conversam entre si, não observam o outro, não ligam para um amigo para compartilhar suas angústias, não aprendem com a experiência alheia, seja ela de seus próprios pais ou de seus pares e – o que é pior – sentem poder jogar fora recursos míticos e narrativos tão tradicionais como as estórias, que foram criadas exatamente para nos tranquilizar um pouco do susto do viver.
Este vazio é ocupado de forma perversa pelo discurso “científico” que se acredita imbuído do poder de dizer às pessoas o que elas devem ou não fazer, como devem ou não pensar. Destitui-se a responsabilidade do sujeito por si mesmo.
Vocês já repararam quantos programas existem na TV em que “especialistas” se colocam na duvidosa posição de “orientar” pessoas sobre como cuidar de crianças, sobre como emagrecer, sobre como ser feliz, como dormir e comer bem, como fazer sexo bem, etc. A vida se transforma em uma grande performance para ser exibida nas reuniões de condomínio, nos shoppings e nas festas infantis.
Com isso, o sujeito se vê desresponsabilizado frente à sua própria vida, frente às suas próprias angústias. Acredita, tal como uma criança ou um crente, que o especialista terá a resposta que irá mudar definitivamente a sua vida.
Reivindiquemos, portanto, o direito de sentir medo. De sermos frágeis, de termos dúvidas, de não sabermos para onde ir, de não termos uma opinião a dar. Para que o sentido mais profundo desta palavra –humano – não acabe indo tão logo parar em um museu.