Em tudo o que vivemos, em tudo o que fazemos, em cada lugar que habitamos, em cada pessoa que amamos, por cada filme ou livro que choramos, deixamos uma parte de nós. Despedir-se desta parte é como perder um dedo ou um braço, ou quem sabe, um pedaço do coração ou do fígado ou dos pulmões. E deixar para trás é sempre doloroso. Porque esta parte nossa, nunca mais a reencontramos. Aquele lugar ficará vazio para sempre. Só que para existir poesia é preciso haver vazios; é preciso o silêncio e a ausência para brotar o novo.
Despedidas são, portanto, moças parteiras de vazios. Cada despedida trás ao mundo, de uma maneira inaugural e bela, uma brecha, um vazio, de onde poderá surgir – quem sabe – um raio de sol, ou fazer chover uma lágrima de dor. Para ter, é preciso suportar perder. Para nascer, é preciso deixar morrer. O novo sempre contém algo do velho em si mesmo, embrenhado nas brechas do invisível. A mãe que pare o filho deixa morrer um pouco de si. Este é o grande altruísmo do amor. Deixar-se morrer para ir além de si mesmo.
Como ser humano, mulher, esposa, filha, irmã e psicanalista tenho experimentado, junto de meu esposo e grande amor, algo que Wilfred Bion designou por experiência catastrófica. É algo como uma grande morte daquilo que você vinha sendo, para ir em direção à um novo eu, absolutamente desconhecido e, por isso mesmo, temido. Temos, eu e ele, gestado e parido por um longo tempo uma linda casa no meio da mata. Como fêmea e parteira de minha cria, ainda híbrida, meio real, meio fantasmagórica, tenho sustendo angústias inimagináveis. É mais ou menos como pular de um enorme penhasco e ir se liquefazendo à medida da queda. E lá em baixo, virar uma borboleta ainda disforme e tímida no seu bater de asas.
Deixar para trás as pequenas extensões de minha confortável moradia para me lançar em um território misterioso, de extensões muito maiores e mais integradas com o exterior, tem sido algo de difícil elaboração. Mas como fêmea-parteira eu sigo em frente, tendo como único farol e bússola à minha frente, o sonho de ter um pé de jabuticabas à mão. Munida desta potente e fértil imagem – eu com meu pezinho de jabuticaba ao ler um livro de Guimarães Rosa – sigo em frente, amedrontada como uma criança de colo, mas com a esperança de um Hércules no coração. Sim, caro amigo, meu sonho sofreu muitas intrusões e perigos pelo caminho. Outro dia queriam exibir meu pé de jabuticaba para os olhares curiosos da rua, porque “o que era bonito era para ser exibido”. Respondi, delicada mas um pouco impaciente, que não, que a beleza deve ser protegida dos olhos vorazes, e deve deleitar tão somente aqueles que tenham o coração singelo para apreciá-la. Acharam-me muito esquisita. Não me importo. Victor Hugo dizia que o solitário, o esquisito, é um diminutivo do selvagem, aceito com muita intolerância pelos normais civilizados. Pois então, estarei no lugar onde devo estar: próximo dos selvagens, no silêncio misterioso e fecundante da noite escura, com meu pé de jabuticaba, com meu livro e com meu grande amor, a quem tive a imensa sorte de encontrar nesta vida confusa e perigosa.
Então, vida antiga, se me perguntares porque não fica, direi-te, tenho que ir porque senão morro. Mas vou com lágrima nos olhos porque me foi até então enormemente gentil e benfazeja. Agradeço-te a cada minuto desta linda vida que tem me dado, mas agora devo partir. Porque esta é minha natureza e porque tenho pressa de me buscar, sempre ali onde sei que não estou. Porque é lá que eu vou encontrar, não as respostas, mas outras melhores perguntas. Então, Adeus, e muito obrigado por tudo. E do vazio deixado pela despedida, uma pequena flor nascerá. Uma singela flor vermelha, que é discreta, que é linda, e que é perene.
Lindo! Como dói deixar o vazio se fazer, e como é angustiante a espera de um novo nascimento. E como é boa a satisfação de ver o novo. E como é esquisito que esses sentimentos, tão opostos, só possam existir um a partir do outro.