Começarei minha exposição fazendo uma escuta analítica de uma das frases que mais ouvi desde a derrota do Brasil, vivida tragicamente por todos nós, no último sábado: “Isso parece um pesadelo!”
Thomas Ogden, um dos mais estimulantes analistas contemporâneos, ensina-nos que pesadelos são “um sonho em que a pessoa acorda com um terrificante sentimento de medo”.
Segundo ele, ao despertar, a pessoa tem dificuldade em distinguir, mesmo que por um curto período de tempo, se está acordada ou dormindo. No pesadelo, para Ogden, a mente do sonhador foi submetida a um sofrimento emocional intenso que requer uma elaboração psicológica inconsciente que, se realizada, pode se transformar em crescimento.
Partindo desta interessante conceituação de Ogden e, compreendendo a experiência que acabamos de vivenciar na Copa como sendo um “pesadelo”, coloquei-me a refletir: qual foi o sofrimento emocional intenso a que todos nós estivemos sujeitos, como nação e indivíduos nesta última semana? E mais, como este sofrimento emocional intenso, caso sendo sonhado e metabolizado por cada um de nós, pode vir a se transformar em algum tipo de crescimento? E se isso puder acontecer, qual a aprendizagem profunda que podemos realizar com estes terríveis fatos?
Para tentar encontrar algum sentido às minhas reflexões passarei a relatar agora, em um espírito de livre associação, o modo como os dois últimos jogos do Brasil me afetaram:
Terça-feira, dia 08 de julho. O Brasil está na expectativa e eu também. Todos cantam o hino nacional em um alegre sentimento de brasilidade. Lembro-me de, neste dia, ao cantar o hino, sentir uma imensa gratidão pelo meu país que, a despeito de todas as dificuldades e mazelas, oferece-me uma boa vida. Começa o jogo e vem o baque: o jogador colombiano acerta violentamente a coluna de Neymar. Primeiro pensamento terrorífico que me invade: será que ele ficou para ou tetraplégico?* Foi inevitável lembrar-me do filme Menina de Ouro. Sabemos que impactos na coluna são extremamente perigosos. O impacto emocional foi violento em mim. Fui invadida por um profundo sentimento de pavor; sensação semelhante a algo como estar sendo submersa em um mar revolto. Senti-me impactada e incapaz de pensar. Sentia meu corpo cansado, como se houvesse “levado uma surra”. Associei esta sensação a alguma pancada (como a vivida por Neymar); situações que me levou a pensar que estaríamos diante de algo profundamente traumático.
*Fiquei sabendo, pelo boletim médico de Neymar divulgado na imprensa neste sábado (dia 12) que, se a lesão tivesse ocorrido 2 cm acima de onde foi, ele teria perdido o movimento das pernas; avaliação que comprova a gravidade da agressão. Ressalto, ainda, o impacto emocional que uma situação de risco como esta tem para o psiquismo de uma pessoa.
Vamos agora fazer uma pausa e revisitar o conceito de trauma. Para Freud, trauma é uma vivência que excede a capacidade do ego (do eu) de metabolizar, de digerir e de pensar sobre o evento vivido. Esta vivência traumática invade o psiquismo e se incrustar nele, como um corpo estranho. O impacto para o psiquismo é tão grande que, este corpo estranho – o evento traumático – “rouba” toda a energia do psiquismo que fica sendo repetido (como uma cena de um filme que passa muitas vezes) sem poder ser pensado. Este é, aliás, um dos sentidos implícitos ao fato de estarmos vivendo um “pesadelo”, ou seja, algo de uma experiência traumática que requer elaboração.
Era, portanto, exatamente isso que eu estava vivendo com a “pancada sofrida por Neymar” – experiência traumática (pelo excesso de violência que irrompe), impactante e desestruturante para o psiquismo.
Continuando minhas associações:
Depois da “pancada” e, tendo recobrado um pouco a capacidade de pensar, vi-me angustiada e revoltada pelo fato de o juiz não ter tomado nenhuma providência para barrar / conter a violência do colombiano. O sentimento neste momento era de desamparo frente à violência que, de repente, irrompe (como aconteceu no campo de futebol), traumatiza e machuca.
Pois bem. O que fazer diante da violência quando a Lei falha? Como o ego pode se sentir seguro frente à violência do id se as instâncias civilizatórias (representada pelo superego) não comparecem?
Penso que todas estas vivências terroríficas vividas pelos jogadores na terça (e por todos nós) culminaram no “apagão” que, tristemente, vimos acontecer no sábado e que culminou com a derrota brasileira.
Então, o que quero dizer é o seguinte: o apagão que vimos acontecer em campo no jogo de sábado se deve ao excesso de traumatismo psíquico que desestabilizou o ego dos jogadores. Este excesso de traumatismo psíquico se deve, a meu ver, a dois fatores: 1) a violência que eclode contra o jogador, machucando e colocando sua vida em risco; 2) o sentimento de impunidade que, em linguagem psicanalítica, representa a situação em que o ego fica à mercê dos impulsos destrutivos do id.
Esta questão é muito séria e precisa ser pensada pelos representantes da lei. Freud considerou que são os alicerces sociais (no formato de leis, normas e regras) que possibilitam alguma contenção da violência instintual do id. Afinal, como sempre digo em meus textos, o homem é um animal e necessita de instâncias sociais capazes de colocar algum limite em sua destrutividade. Quando isso não acontece – como ocorreu no jogo de terça-feira – o psiquismo fica invadido e à mercê da violência, fragilizando o ego; situação que explica a pane vivida pelos jogadores.
Tendo dito isso, gostaria de arrematar minhas ideias com o que, para mim, foi mais lamentável nesta história toda.
Em outro texto meu intitulado Futebol: paixão e violência em busca de representação argumentei que os esportes em geral, e isso inclui o futebol, tem a função social de possibilitar ao humano alguma forma de contenção e representação para sua violência, que lhe é inerente. Dito em termos bem simples: precisamos do futebol e dos esportes para não fazermos guerra.
Mas, a meu ver, há elementos sociais ainda mais importantes de serem ensinados por meio de um esporte. E um deles é o respeito e a compaixão pelo oponente.
Neste sentido, fiquei profundamente triste e impactada ao perceber que, no jogo de sábado, mesmo que os alemães tenham percebido a completa pane mental vivida pelos jogadores, não pouparam em momento algum seus adversários da humilhação. Prevaleceu não o espírito esportivo, mas o espírito competitivo, predatório.
O gozo pela humilhação e pelo massacre do oponente se impôs. Associo esta situação a algo que ouvi de uma pessoa, que buscava encontrar alguma representação para o horror vivido em rede nacional. Contava ele sobre uma mulher que fora baleada com cinco tiros a queima roupa: dois no coração e três na cabeça. Sua indagação era: porque tanta crueldade? Se o anseio era por matar, um tiro não bastaria?
Compartilho desta indagação e faço a mesma reflexão: dois ou três gols não bastariam? Por que sete tiros / gols, a queima roupa? Em uma seleção que, pelo menos naquele momento e naquela condição mental precária e fragilizada, não oferecia risco algum?
Neste momento, infelizmente, prevaleceu não o espírito esportivo, que implica em um profundo sentimento de compaixão pelo outro, mas o espírito predatório e violento, que goza com o massacre, com a humilhação do outro.
Notem que o aspecto que estou frizando em meu pensamento não é o impacto narcísico da perda. Este aspecto obviamente pode ser ressaltado, pois, em um jogo de futebol ou em qualquer outro esporte é inerente o fato de, ao final da partida, haver um ganhador e um perdedor. Obviamente isso é doloroso do ponto de vista narcísico, pois mente quem diz que gosta de perder. Mas, a meu ver, o acontecimento mais traumático desta situação toda não foi o fato de perdermos a Copa do Mundo em casa, mas o impacto que a violência cometida contra o jogador Neymar, contra a qual não houve qualquer sanção legal, teve sobre o psiquismo da equipe brasileira.
Vale a pena nos perguntarmos: porque Zidane, o jogador francês, foi duramente punido por ter perdido a cabeça diante da provocação do adversário e o colombiano não? Não seria isso fruto do gozo sádico do humano, sempre preparado para criticar e gozar com o desarranjo mental do outro? Não carregaríamos um pouco, cada um de nós, um colombiano sádico que busca arrebentar e bater naquele que está brilhando e, certamente, provocando inveja? Não é isso que os nossos aspectos sádicos e invejosos fazem com o nosso Neymar interno, que insiste em brilhar e ter sucesso?
Para finalizar, gostaria somente de reassegurar que não se trata de vitimar os brasileiros e culpabilizar os alemães, pois, só para lembrá-los, na Copa de 68 foi um dos nossos que quebrou uma das pernas de um dos melhores artilheiros franceses, retirando a França da Copa.
O que quero frisar com este texto é que, independente da vítima ser brasileira ou francesa (na verdade, não importa a nacionalidade), todos saímos perdendo com a violência gratuita, com a falta de compaixão, com o gozo pela humilhação. Saímos perdendo também quando a Lei não comparece em sua função fundamental de dar contorno e continência à violência e destrutividade humana.
Somos todos nós que perdemos com situações trágicas e tristes como estas, pois, mais uma vez acabamos por corroborar aquilo que Freud, em um tom pessimista, concluíra ao final de sua vida: que a raça humana não tem dado sinais, pelo menos até o momento, de ser uma experiência viável.
Fica aqui a minha torcida e meu genuíno desejo de que estes jovens e bravos jogadores possam cuidar de seus machucados mentais, de modo a não permitirem que a violência que insiste em irromper, assassinando sonhos, projetos e desejos, não se sobreponha ao bom e ao belo da vida.
Ana
Excelente texto! Show de bola como sempre!
Se me permite um pitaco….a derrota é inerente aos jogos né? Afinal de contas, só há um ganhador se houver algum perdedor.
O baque do último jogo na minha opinião não foi por conta da derrota do brasil (que já era esperada visto as diferenças entre as duas selecoes) mas sim pelo orgulho ferido.
A goleada que poderia ter sido amenizada (e sera que não o foi?) nunca será esquecida por nós pois feriu nosso orgulho, nossa civilidade.
Se um dos objetivos do esporte é evitar a guerra, fomos “subjugados” e aprisionados pelos alemães em nossas mentes, claro.
Porém, em termos de éticos, os alemães em nenhum momento aproveitaram da situação para nos ofender dentro e fora de campo. Pelo contrário.
Talvez o seu passado não muito distante ao perderem as últimas duas guerras mundiais, possibilitou a eles alemães uma experiência de vida diferente da nossa.