Reflexões sobre a melancolia e o tédio em Felicidade Conjugal, de Liev Tolstói

Em Felicidade Conjugal, de Liev Tolstói, encontramos um estudo profundo sobre a melancolia e o tédio, que pode ocorrer em qualquer fase da vida, embora costume se agravar com a chegada da meia idade.

Um dos motivos para isso é que, enquanto o jovem percorre seus sonhos e desejos com obstinada empolgação, o homem e a mulher de meia idade começam a perceber que há muito de ilusório nestas ambições. 

O que os obriga, ao chegar à meia idade, a rever e aprofundar seus valores. Daí Nelson Rodrigues dizer aos jovens que, por favor, envelheçam. 

Assim, por exemplo, a mulher e o homem que sonharam ser pais, com os filhos mais velhos, podem se decepcionar com o que estes se tornaram, e que o tempo maravilhoso em que eram pequenos não volta mais. 

Já aqueles que dão muito valor ao trabalho, podem, na meia idade, começar a se entediar com o que passaram seus últimos vinte ou trinta anos fazendo. Ou, então, a perceber que só se cansaram e não chegaram a lugar algum.  

Nesse aspecto, a possibilidade de salvar-se do tédio e da melancolia passará por um aprofundamento no olhar sobre as coisas e uma revisão honesta sobre as rotas tomadas, o que nunca é fácil. 

Felicidade conjugal

É este aprofundamento de valores do homem que sabe envelhecer que encontramos em Serguei Mikháilitch, marido da protagonista Macha, na novela Felicidade Conjugal de Liev Tolstói. 

Assim, em dado momento em que ela está profundamente entediada com a vida familiar e conjugal, e fica caçando briga com o marido só para sair da pasmaceira e da angústia em que se encontra, acusa-o de ser um bobo e estar sempre satisfeito com tudo. 

O que ele lhe explica sobre isso é que sua insatisfação juvenil fazem-na desdenhar de uma vida tranquila, quando na verdade, ter paz é tudo o que importa. 

Algo que ele obviamente só pôde aprender depois de já ter sido jovem e ter perdido bastante tempo sendo bobo. Daí não se poder condenar os jovens por sua tolice, que faz parte do seu amadurecimento. 

Nesse aspecto, ser feliz na maturidade poderá  significar ser capaz de enxergar beleza nas pequenas alegrias diárias da vida. Como regar uma planta, cultivar velhos hábitos, dormir uma boa noite de sono, ter o intestino regular e nenhuma doença grave à vista. O que não significa que, de vez em quando, não se será assaltado pelo tédio. 

Já para a jovem Macha ser feliz era ir à bailes, ser cortejada pelos homens e admirada pelas mulheres, e estar sempre em busca de novidades.

Rotina x novidade

Assim penso que Macha e Serguei representam duas dimensões da condição humana que conflitam em nós a vida toda, sendo elas, respectivamente, a busca por novidade e mudança versus o prazer na estabilidade e na rotina, tendo ambas o seu valor, desde que na medida certa.

Sobre isso, erroneamente se associa o desejo por novidades à juventude e o gosto pela estabilidade aos adultos e velhos. 

Prova-se o preconceito desta visão no fato de ser muito comum adultos de meia idade serem assaltados por um desejo louco e irrefreável por mudança, que pode levá-los, por exemplo, à se divorciar repentinamente, abandonar suas carreiras e largar tudo, mudar de estilo de vida ou de cidade ou mesmo envolver-se em casos extraconjugais.

Daí ser crucial não moralizar o sentimento de insatisfação nem o gosto por rotina, tudo dependendo da dose e de se ter um espaço de reflexão, antes de se tomar qualquer decisão.  

Pois, se a insatisfação é o que nos leva a mudar situações ruins, em excesso, pode tornar uma pessoa exigente e incapaz de valorizar o que possui. Cita-se sobre isso o exemplo de pessoas que, tomadas por um ímpeto de tédio e insatisfação, divorciam-se de casamentos felizes, e depois se arrependem.

Da mesma forma que gostar da rotina diária e ser organizado pode significar sabedoria e capacidade de ser feliz com coisas simples, apegar-se em excesso à rotina e à estabilidade pode tornar uma pessoa excessivamente medrosa, controladora, acomodada e despreparada para lidar com mudanças inevitáveis da vida.

 Nesse aspecto, entendo que o tédio pode ser expressão de um desejo incipiente por mudanças e transformações que brotam de dentro. Desejos, que, se bem entendidos, podem culminar em verdadeiros pontos de virada na vida. 

Outro destino ao tédio, infelizmente muito comum, é a pessoa não fazer nada a respeito e passar o resto da vida reclamando.    

Assim, como psicanalista, considero muito seriamente o tédio e a melancolia em meus pacientes como podendo ser a expressão de verdadeiros desejos por mudança ainda não muito bem formulados pela própria pessoa. 

Princípio de um longo e doloroso processo de desalienação no qual a pessoa começará a se indagar, por exemplo, se vale mesmo a pena fazer tudo o que se espera dela, seja ser o “bom” filho, o “bom” cônjuge, os “bons” pais, o “bom” trabalhador, o “bom” vizinho, etc.

Outros fatores que parecem gerar tédio são o excesso de conforto material e ausência de desafios e dificuldades a serem superadas e a ação massiva do ódio na mente.

O amadurecimento de Macha

Finalizando, vemos na novela Macha encaminhar-se para um amadurecimento e aprofundamento do seu olhar. Assim, por exemplo, aprende que o amor inflamado e febril que experimentou pelo marido nos primeiros tempos de casamento, afinal, não poderia durar para sempre, já que “cada tempo tem seu amor”.  

Mais madura, também aprende a enxergar beleza nas pequenas coisas singelas da vida como os pezinhos do filho e a rotina de chá com o marido. 

Em suma, terminada a crise, a ingênua e insatisfeita Macha deixará de desprezar o marido por seu jeito simples e fácil de ser feliz, finalmente descobrindo que ninguém escapa em alguma medida à monotonia e ao tédio da vida, que pode ter lá sua grande beleza. 

* Não é imprescindível que o leitor conheça a novela para acompanhar o artigo. Mas, se quiser se deleitar com a leitura deste clássico, clique aqui para baixar o livro Novelas Completas – Liev Tolstói.

** O uso do termo melancolia no presente artigo não corresponde ao conceito estritamente freudiano conforme descrito em Luto e Melancolia (1915), mas à presença de sentimentos de tristeza, apatia e desânimo que se experimenta ao longo da vida.

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