É sabido de todos que o Brasil vive um período de crise política e financeira, consequência de um pensamento mágico que pairou entre os governantes e a população na última década de que a crise mundial não iria chegar aqui (“era só uma marolinha”) e de que, por isso, podia-se gastar muito mais do que se arrecadava.
Diante da constatação de que há uma crise instalada, meu objetivo neste post é refletir sobre como, em momentos de crise (individual e nacional), as pulsões destrutivas tendem a predominar no psiquismo levando o indivíduo a entregar-se sem tanta resistência ao princípio de prazer.
Vou explicar melhor o que quero dizer utilizando duas situações vivenciadas por mim.
Primeiro escuto alguns conhecidos dizendo que estão pensando em encerrar com seus terapeutas porque estão sem dinheiro e porque terapia não é um item de primeira necessidade. Ou seja, dá para passar sem.
Em seguida observo que os shopping-centers continuam cheios, assim como bares, restaurantes e manicures. Diante disso indago: Onde está a crise? E se há uma crise (acho evidente que exista) porque as pessoas estão considerando mais imprescindível não deixarem de dar suas saidinhas aos finais de semana ou manterem suas unhas em dia do que cuidar da mente?
O que isso revela sobre o psiquismo humano?
Em “Projeto para uma psicologia científica” Freud nomeou pela primeira vez que a mente humana é regida pelo princípio do prazer. Isso significa que existe uma tendência geral da mente a evitar o desprazer e a buscar o prazer.
Vemos este princípio bem representado nas duas situações descritas acima: fazer terapia é quase sempre desprazeroso, exige esforço, renúncia, tolerância à frustração. Beber chope, cuidar das unhas, fazer compras não exige esforço. Nestas atividades há um predomínio do princípio do prazer (“eu quero = eu tenho”). Inclusive é a partir desta lógica que os cartões de crédito ganham somas estrondosas de dinheiro porque dentro da lógica primária da mente: se eu não vejo o dinheiro saindo do meu bolso, não estou pagando.
Diante da necessidade de contenção de gastos, seguindo a perspectiva do princípio do prazer de Freud, as pessoas vão tender a eliminarem aquilo que é mais desprazeroso para elas. Por isso a terapia é o primeiro item da lista que costuma ser cortado.
Isso nos leva a pensar que a explicação racional dada de que terapia não é um item de primeira necessidade na verdade esconde a resistência da própria pessoa frente ao esforço que este trabalho exige dela.
Pois, nesta lógica, compras no shopping, saídas aos finais de semana e manicure também não são itens de primeira necessidade. Aliás, parece-me que estas atividades por mais prazerosas que sejam encerram-se em si mesmas: a unha se desfaz em uma semana, a roupa comprada de forma impulsiva fica esquecida no armário.
Já a terapia dá ao sujeito condições, no longo prazo, de se desenvolver. E este é um bem impagável. Nesse sentido é verdadeiro que terapia não é mais importante que comida ou ter uma casa para morar, mas não é verdadeiro que ela seja supérflua.
Ao contrário, em tempos de crise estar em terapia pode ser fundamental para ajudar o sujeito a se diferenciar de um discurso pessimista e histérico que tende a predominar no meio social e que alimenta bastante bem os aspectos invejosos da mente.
Oi querida Ana,
Penso que outro aspecto associado ao fato das pessoas abrirem mão da terapia facilmente (em momentos de crise ou não) tem a ver com o fato de que uma psicoterapia ou psicanálise não proporcionam resultados imediatos — diferentemente das satisfações concretas e instantâneas da unhas bem feitas, roupas novas, e refeições em restaurantes. Infelizmente, a cultura de hoje mata no sujeito uma das capacidades mais importantes para a saúde mental, que é a capacidade de refletir e de adiar gratificação — algo que, como vimos em Freud, já é inerentemente difícil para o ser humano. Abraços.
Olá Ana! Simplesmente sensacional o texto. Belíssima reflexão!
Observa-se também a relação entre desejo e necessidade, bastante comum não se querer o que deseja pois, assim não se arrisca a perder o que lhes é seguro, precioso, e conhecido.
Aline, que bom que gostou da reflexão proposta pelo texto. Muito interessante você chamar a atenção para a diferença entre necessidade e desejo. O que eu acho que você quis dizer é que muitas pessoas não podem dizer a si mesmas, por exemplo, que amam alguém porque elas sente que reconhecer a importância do outro para ela é algo muito perigoso. E é perigoso não porque o outro pode ir embora, mas sobretudo porque a própria pessoa tem que se responsabilizar cada vez mais por cuidar do objeto amado. E isso é trabalhoso, envolve assumir novas responsabilidades frente à vida. Saint-Exupery no livro “O pequeno príncipe” disse que nós somos responsáveis por aquilo que amamos. Acho que tem tudo a ver com o que você disse. Quanto mais reconhecemos a nossa necessidade de sermos amados, mais nos sentimos responsáveis pelo bem-estar daquele de quem buscamos o amor. E o ser humano tende a se assustar muito com novas responsabilidades. Forte abraço para você!