Sobre abutres e água de alfazema

maquina de escreverCaio não nasceu, rebentou. Era uma criança tão desajeitada que seu pai queria amá-lo, mas não conseguiu. Tudo nele era parvo. Seu ser fazia-se estabanado; tinha ares de estupidez branca, mas não porque fosse limitado ou incapaz. Era por desarvoramento de alma que ele não conseguia pensar com lucidez. Os seus dois únicos fracos sentidos na vida eram comer e dormir. Neste quesito era mais como os gatos, os cachorros, os tigres e os elefantes.

Selvagem, o pai de Caio havia esperado outro filho; alguém mais pronto, acabado como ele próprio julgava ser. Em sua lógica só o perfeito merecia ser salvo; o torto devia ser deixado aos abutres.

Acontece que na torta vida humana faltam abutres para devorar os tortos, os mal acabados, os nunca nascidos, os carentes de espírito. Na vida humana a lei implacável da sobrevivência dos mais fortes não é um fato consumado. Sempre há um gesto de amor que adota e muda o curso.

Nesta trágica família, o gesto de amor veio da mãe, torta como Caio.

Daí que o pai do menino teve que suportar o lento e inexorável crescimento do filho.

Os anos foram passando e a tragédia ia se tornando cada vez mais anunciada à medida que Caio assumia seu corpo adulto. O enlouquecimento frenético estava prestes a se consumar.

Aos poucos, a verdade, que estalava como brasa, e a proximidade da morte foram impedindo o velho pai de dormir e também de acordar. Seus pensamentos, que não mais mereciam  este nome, passaram a ser barulhos, restos de significado e, portanto, incompreensíveis à sua crueza. Se alguém tivesse lhe dito que seu sofrimento era porque nunca amara o filho torto talvez ainda houvesse salvação. Isso porque o que o enlouquecia não era propriamente a verdade, mas a sua surdez para ela.

Assim, o descolamento da alma foi inevitável. Com o tempo, o velho deixou-se de banhar, de comer, de trabalhar, de dormir e de acordar. Tornou-se um sopro, um fiapo de aspecto cavernoso e repugnante. Cada vez mais implacável urrava de dor, de cólera, de espanto. Passou a vagar sozinho pelas ruas. Pegava bichos peçonhentos com os dentes, voava com as bruxas e com os gnomos; apartou-se para sempre da vida civilizada. Sua inteligência explodira e nada pôde fazer por si mesmo. Tornou-se um eterno parêntese.

Caio, o filho torto, assumiu com entrega o cuidado do velho pai, cada vez mais verde e mais louco. No dia de seu último suspiro, o velho chamou a presença do filho. Seu pedido fora também um grito de perdão. O confronto tenebroso com a morte havia finalmente amolecido sua alma de ferro.

Pela primeira vez amado e reconhecido em sua alma limpa e torta pelos olhos do velho pai, Caio, com sua força de touro, carregou o corpo moribundo para debaixo de uma figueira que havia sobrevivido às marcas do tempo. Lá despiu aquele corpo esquelético e transparente, já quase entregue ao fim, e durante três ou quatro horas, limpou-o serenamente com água de alfazema enquanto cantava uma cantiga de ninar.

A tarde em seus tons melancólicos, resplandeceu. O sol foi avisado de que o milagre estava se dando. Ali, aquele menino torto e rebentado, nunca reconhecido, estava dando vida a seu pai. Numa transmutação da natureza, era o filho que gerava o pai pela primeira vez.

Depois deste ritual límpido, com cheiro de água de alfazema, o velho pai deu seu último suspiro. Não havia perdão em seus lábios. Mas seus olhos, vítimas de um eterno marejado, choraram pela primeira vez. A alma finalmente havia nascido e de seu corpo brotava luz.

3 comentários em “Sobre abutres e água de alfazema”

  1. Ana Laura,

    Que coisa mais linda! Adoro suas metáforas, suas figuras de linguagem…deixam completamente o leitor decidir o que significa ser torto, ser verde, voar com gnomos…essa insaturação de significado paradoxalmente torna o significado mais rico para quem lê…Obrigada por compartilhar mais uma de suas belas estórias. Um forte abraço!

  2. Olá Ana.
    Que belo texto!!!
    Por incrível que pareça, às vezes a alma pequena não é de quem é esquecido, mas sim de quem se diz forte e selvagem e que só no fim se descobre o quão torto foi durante toda a vida. E, aquele que nunca pôde ser amado como gostaria, mostra-se quão grandiosa e nobre é sua alma e com esse gesto de amor à vida consegue amar mesmo nunca tendo aprendido.
    Sempre há um gesto de amor.
    Abraço

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.