A sobriedade estética do amor

homem-caminhandoO amor que um ser humano deve buscar cultivar pelo outro – um analista por seu analisando, uma mãe ou pai por seu filho, um cônjuge por seu companheiro ou um amigo por outro – é sóbrio e deve ser capaz de comportar verdades humanas paradoxais e, por isso mesmo dolorosas. Quando isso é atingido, uma nova forma estética de viver é possível. Nesta estética, beleza e verdade se equivalem. A vida se torna bela porque verdadeira e toda a forma de mentira e hipocrisia é repudiada porque fere esta mesma busca estética pelo bem viver.

Nesse sentido, a verdadeira amorosidade por nosso semelhante se expressa por atitudes que contemplam firmeza e consistência, amor à verdade, acolhimento à fragilidade humana, mas sem o sentimento de penalização que infantiliza e fragiliza o ser, que só poderá se desenvolver se tiver condições de se confrontar, por si mesmo, com suas próprias questões.

Certa vez, vivi uma experiência em que senti profundamente esta ideia a respeito da sobriedade estética do amor. Foi assim.  Meu marido tinha uma reunião com a mãe de um menininho, entre cinco e seis anos, e como estávamos os dois ali de bobeira, decidi convidá-lo a dar um passeio. Só o fiz porque tive vontade, se não, não o faria. Ele certamente sentiria a minha hipocrisia e aprontaria alguma comigo.

Convidei—o de forma sóbria, sem muita empolgação. Afinal, é um tanto quanto ridículo dois estranhos fingirem intimidade. O garoto, de grandes olhos pretos e atentos, acompanhou-me. Deve ter sentido algo estranho e deliciosamente novo no ar. Caminhamos por um bom tempo em silêncio, um ao lado do outro. Eu não tinha vontade de puxar papo, só de usufruir da vista, em silêncio, na companhia daquele ser desconhecido para mim. Ele acompanhou-me no silêncio. Parecia estar entrando em uma igreja sagrada. Postou-se como um pequeno monge, com as mãos para trás, lembrando um pouco a postura de Sherlock Holmes em suas sérias investigações sobre os mistérios da vida. Em seguida, chegamos a um berçário de peruzinhos. Senti que meu colega estremeceu, mas não fiz nada. Não podia impedi-lo de sentir o baque que é a vida.

Só fiquei ali sustentando sua tensão interna. Já desesperado, ele não aguentou e me lançou na cara a pergunta:

Cadê o pai e a mãe deles? Eles não vão voltar?

– Não, respondi sem pestanejar. Bichos se viram sozinhos depois de um tempo em que nascem.

 A verdade explodiu no peito do meu pequeno companheiro como uma bomba, mas também como um bálsamo. Ele baixou sua pequena cabeça, em sinal de luto, por ele, pelos peruzinhos e por todos nós. O silêncio era pesado, metálico. Ficamos ali parados por uns cinco minutos, eu sustentado a dor dele e a minha, em silêncio.

Passado o mal-estar, meu pequeno colega, agora já mais solar, convidou-me alegre:

Vamos no balanço?

Fomos. Ele se encarapitou no balanço e balançava feliz da vida o seu corpo, agora liberto da prisão do medo. Eu, em estado de êxtase, deitei meu corpo na grama para receber todos os raios solares a que eu tinha direito. A cena era sensual e de alta carga estética: dois selvagens aproveitando a vida até o último gole.

O meu coleguinha, agora um pouco mais meu companheiro nas dores silenciosas da vida, ainda fez uma última tentativa. Desceu abruptamente do balanço e me ordenou enfático e ditador:

Pega água pra mim!!!

– Eu não. Pega você!, o que eu respondi tendo em vista que o bebedouro e o copo estavam a poucos passos de onde estávamos e que, portanto, ele tinha total condição física de pegar sozinho.

Feliz da vida, ele foi, liberto, pegar sua água por si mesmo, sentindo como um pequeno santo, a delícia de movimentar cada um dos membros do seu corpo para cuidar da sua própria existência.

Mas para minha tristeza, a reunião terminou e sua mãe o chamou. Ao chegar perto dela, o sábio ancião desapareceu para alguma caverna dentro do menino, como num passe de mágica. Seus olhos se tornaram opacos, e ele voltou a parecer um pouco imbecilizado.

Pega água para mim, mamãe? disse em tom choroso e cínico.

Claro que sim, meu filho! Foi o que sua mãe, um pouco covarde, respondeu, enquanto ele olhava para mim com um ar de deboche.

A moral desta pequena história, até onde pude acompanhá-la, é que meu coleguinha ainda não estava conseguindo suportar a terrível verdade: a de que cada um de nós é solitário na responsabilidade pela incansável manutenção de sua vida, como os peruzinhos (que, é verdade, tem a sorte de não se questionarem sobre isso).

Mas, o agravante é que sua mãe parece estar equivocada em sua concepção de amor. Para ela, amar sua criança é privá-la da dor de se saber só e responsável por si mesmo, algo que se espera que uma criança possa ir aprendendo desde cedo. Afinal, o grande choque dele foi: se o meu destino for o mesmo do peruzinho, o que será de mim?

Sim, caro coleguinha, seus pais morrerão antes de você se tudo correr bem e uma das grandes aprendizagens da vida é podermos aprender a cuidar da nossa própria existência, com alegria e competência.

Ou seja, uma das metas do amor sóbrio é ajudar a cada ser humano a se conscientizar de que, sim, a labuta da vida é diária, e que cada um de nós deve ser responsável por cuidar dela, mas que isso pode ser feito com prazer e vitalidade. Que exercitar o corpo para preparar o próprio alimento, pegar água, exercitar-se diariamente, cuidar da própria casa e do asseio pessoal, do jardim e da vida em suas várias dimensões são ações extremamente prazerosas quando podemos aceitar, sem revolta nem ódio, que este é o preço que devemos pagar pela dádiva de estarmos vivos.

Posso hipotetizar que esta mulher abomina o esforço inelutável da vida transmitindo esta mesma revolta a seu filho. Mas isso só poderia ser melhor compreendido e trabalhado em um contexto clínico.

Encontrei meu coleguinha depois umas duas ou três vezes. Fiquei procurando bem dentro dos seus olhos o pequeno Sherlock que eu conheci naquele dia. Não o encontrei mais. Não sei se ele sucumbirá para sempre nas teias sombrias dos hábitos ruins, da preguiça, do ódio ao esforço (que é mesmo que ódio à vida). Meus votos sinceros são para que meu pequeno Sherlock continue vivo, como uma pequena semente, que possa florescer em solo mais propício, quando assim o encontrar. Mas tudo isso vai depender do meu pequeno coleguinha e das destinações que ele decidir dar à sua vida. Pois no final de tudo, cabe a cada um de nós decidir o que irá fazer consigo mesmo. Repetição ou reinvenção são os dois destinos possíveis que escolhemos milhares de vezes por dia, desde o instante em que acordamos até o momento em que vamos dormir.

5 comentários em “A sobriedade estética do amor”

  1. Belo texto Ana, assim como você é bela.
    Incrível ou estranho é, que, por mais que se trata de palavras ásperas, acaba em poesia aos olhos de quem lê.
    Sou grata por nos proporcionar palavras tão sábias.
    Abraço

  2. Li esse texto e me veio uma saudade das suas aulas, parece que vi vc contando essas peculiaridades do dia-a-dia, relacionando cada uma com a psicanálise… Um grande abraço, Ana.

    1. Marcela, saudade de você e de todos os meus alunos, que sempre foram meu maior estímulo criativo. É por palavras carinhosas de reconhecimento como o seu, e por eu saber que marquei a trajetória de pessoas que se dispuseram a refletir comigo, seja na clínica ou em sala de aula, que eu me sinto estimulada a continuar escrevendo sobre aquilo que me impacta, sobre aquilo que me emociona e sobre aquilo que me desacomoda do olhar comum. Beijo grande pra você e apareça quando quiser!

  3. Ana,
    Que texto maravilhoso!! Forte abraço prima e continua sempre a escrever, a lutar pela vida, num amor não à indiferença e a possibilidade de uma não embriaguez do anestesiamento!

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