Rodar por dez dias na Patagônia foi uma experiência extasiante. Trata-se de um lugar inóspito e frio, com ventos intensos e constantes, o que a torna um lugar extremamente hostil à presença do homem.
Suas paisagens são constituídas por estepes em tons terrosos a perder de vista emoldurados, de ambos os lados, por montanhas rochosas nevadas e lagos de um azul turquesa translúcido, compondo um conjunto cênico de extraordinária beleza, quase impossível de ser colocado em palavras.
Assim, dirigir por aquelas estradas estreitas e infinitas que cortam os campos patagônicos, que eu nunca me cansava de olhar, é como estar num road movie onde a vastidão infinita da paisagem evoca no viajante solitário uma potente e inebriante sensação de liberdade.
A propósito, sobre isso, conheci inúmeros viajantes que deixaram tudo para trás para viajarem, de carro, bicicleta ou mesmo a pé. Estilo de vida pelo qual eu me sinto muito atraída, pelo espírito de desprendimento que ele comporta. E também porque herdei do meu pai um profundo amor pela liberdade que, em excesso, pode ser perigosa porque pode nos tornar excessivamente solitários.
Foi o que eu pude observar em muitos dos viajantes que conheci , sobretudo no camping em que ficamos, no primeiro dia de viagem, em Puerto Natales, onde pude cozinhar em uma cozinha compartilhada com muitos deles. São em sua maioria estrangeiros, que viajam sozinhos ou em casal, e estão há muito tempo na estrada.
Sobre isso, percebi que estas pessoas conhecem muita gente, mas como estão sempre de passagem, estão sempre sós, o que talvez lhes pese às vezes, não sei.
Acampando no Parque Torres del Paine
Outro ponto alto da viagem foi o fato de termos alugado uma camper van, que é uma caminhonete com uma barraca em cima, para acampar no belíssimo Parque Nacional Torres del Paine, no Chile, onde ficamos por cinco dias. Esta foi minha primeira experiência acampando sozinha com o meu marido e houve momentos bem difíceis.
Por exemplo, no último dia em que acampamos à beira do lindo rio Serrano, por volta das quatro da madrugada começou um vento violentíssimo que nos fez temer seriamente que o carro e a barraca virassem com a gente dentro.
E também, no primeiro dia dormindo na camper van, quando ainda só tínhamos dois sacos de dormir, o que me fez não pregar o olho a noite toda por conta do frio cortante.
Todos esses apertos que eu vivi acampando me fazem admirar ainda mais esses viajantes corajosos que eu conheci na Patagônia, que abrem mão de todo o conforto de uma casa para estarem soltos no mundo.
Desafio físico e psicológico
Outro aperto grande que passei foi nas duas trilhas que fizemos. Ambas desafios físicos e psicológicos que eu me propus vencer, para os quais me preparei com afinco por meses antes.
Trata-se da subida até a base das torres Paine, que dá nome ao Parque Torres del Paine, no Chile, e do imponente Fitz Roy, que fica em El Chaltén, na Argentina, e faz parte do Parque Nacional los Glaciares.
Ambas as trilhas tinham vinte quilômetros, que conseguimos percorrer em dez horas de caminhada cada.
Não sei se foi o acúmulo de noites mal dormidas, a dificuldade de aclimatação num clima muito frio e árido ou o cálculo errado com os provimentos de comida para as trilhas, mas nas duas passei fisicamente muito mal, sentindo mal-estar, náusea e fraqueza, que rapidamente passou após um banho quente e uma noite revigorante de sono.
Também tive algo nos tornozelos que nem conhecia, chamado Púrpura por Esforço Físico. Eles ficam roxos e cheios de hematomas porque o esforço físico extenuante leva à uma falência circulatória.
Nestes dias experimentei o que significa, na prática, lutar contra sua própria mente e corpo, que imploram por parar.
Impressionou-me sobre isso a agilidade dos incontáveis estrangeiros que encontramos nas trilhas, inclusive muitos deles, bastante idosos. Vimos algumas pessoas por volta dos setenta anos fazendo estas trilhas, e ficamos maravilhados!
Tanto as Torres Paine quanto o Fitz Roy são paisagens monumentais, difíceis de serem colocadas em palavras. Certamente, foram os lugares mais surreais em que já estive até hoje. Entretanto, em ambas o lugar é tão inóspito e hostil à presença humana por se tratar de uma área muito exposta ao vento e ao sol, que não é possível permanecer ali muito tempo.
Lembro-me de que, vendo aquelas montanhas nevadas majestosas envolvidas por um lago azul turquesa, pude pensar que só eu podia amá-las e venerá-las ao passo que elas nem registravam a minha insignificante presença.
Ainda sobre isso, vendo tantos caminhantes subindo em fila indiana o pesado e íngreme aclive que levava aos cumes, não pude deixar de pensar que todos ali eram peregrinos em busca do nosso próprio Deus, que no nosso caso se chama Beleza, a tal ponto precisamos de um sentido maior que nós próprios.
Um russo em nosso quarto
Uma parte engraçada da viagem foi num dia em que estávamos dormindo num hostel e um jovem nômade russo bateu à nossa porta à meia-noite e meia.
Ele tinha uma cara engraçada e bondosa. Era extremamente alto e meio desengonçado. Ocorre que o hostel havia vendido o mesmo quarto para nós e para ele, e meu marido ficou com tanta pena do russo que o chamou para dormir no nosso quarto.
Foi bonito ver sua estupefação ao encontrar tamanha bondade em alguém. Por fim, meu marido e ele engataram numa conversa tão animada, que o russo nos contou que havia nascido em uma cidadezinha próxima de São Petersburgo, e já viajava pelo mundo há muito tempo, ao passo que meu marido lhe contou que eu amava os escritores russos. Não vimos o russo partir no dia seguinte, mas vou me lembrar para sempre da sua carinha simpática.
Meu marido anotou o instagram dele: https://www.instagram.com/andrewxengineer
A morte dos guanacos
Mas assim como todo lugar, a Patagônia também tem seu lado sombrio.
Assim, ficamos tremendamente tristes ao descobrirmos que os criadores de ovelhas, que são muitos na Patagônia, colocam arames farpados nas cercas que margeiam todas as estradas patagônicas, para que os guanacos não as pulem, o que os acaba deixando presos nelas.
Um argentino frio e truculento nos explicou que esta é uma forma de se controlar a “praga” que os guanacos se tornaram na região, e ficamos estupefatos com a frieza de alguém que nem sequer imagina como deve ser terrível morrer agonizando, por dias a fio, preso num arame farpado. Em todo o trajeto de El Chaltén a El Calafate, contamos mais de duzentas carcaças de guanacos presos nas cercas.
Glaciar Perito Moreno
Também constatamos que algo, de fato, está se alterando no clima, pois, desde a década de 70, o belíssimo e extraordinário Glaciar Perito Moreno, que fica em El Calafate, na Argentina, está perdendo ano a ano grandes somas de sua massa.
Pinguins na Isla Magdalena
Terminamos nossa viagem indo conhecer a colônia de Pinguins na Isla Magdalena, em Punta Arenas – Chile. Trata-se de uma colônia com mais ou menos 7.000 casais de pinguins que vão todos os anos para a ilha para procriar e trocar de penas. Este passeio me despertou uma ternura profunda.
Já no barco é possível avistar os incontáveis casaizinhos de pinguins, que permanecem juntos a vida inteira (vivem, em média, 25 anos) e só mudam de parceiro se um deles morre. Também é possível avistar na ilha que a luta pela sobrevivência na natureza é violenta e atroz. Assim, havia muitas aves mortas e Gaivotas que predam os pinguins filhotes, o que torna o trabalho dos pais pinguins de proteger suas crias, extenuante e incansável.
O retorno
Agora estou aqui de volta tentando achar de novo algum sentido na rotina, depois de dez dias de um contato intenso com as belezas naturais da Patagônia.
Afinal, como achar alguma graça na pequena lida diária da vida depois de viver coisas tão intensas e contemplar paisagens tão belas?
Refletindo sobre isso concluo que, afinal, ninguém escapa da rotina e nem vive o tempo todo só de aventuras. Cito sobre isso um casal que conhecemos no camping de Puerto Natales, ela brasileira, ele norte-americano, que optaram por se desfazerem de tudo e morarem num carro.
No momento, estavam vivendo um grande aperto porque o carro havia quebrado e precisavam aguardar a peça. Assim, fizeram questão de nos deixar muito claro que, viver na estrada não é um estado permanente de férias, mas a escolha por um estilo de vida que, além de aventuras, é cheio de desconfortos e privações.
Chega-se então, ao óbvio, mas que sempre precisa ser dito. Que escolher é ganhar coisas e perder outras. Embora, tristemente nós tenhamos o péssimo hábito de achar que a vida dos outros é sempre melhor que a nossa, tal é a magnitude da nossa natureza eternamente insatisfeita.
De minha parte, volto desta viagem cada vez mais resoluta de que vez ou outra preciso estar na natureza porque contemplar belas paisagens é um bálsamo para a minha alma. Nesse aspecto, sou como Byron que diz:
Há um prazer nas florestas desconhecidas. Um entusiasmo nas costas solitárias. Uma sociedade onde ninguém penetra Pelo mar profundo e música em seu rugir. Não que eu não ame o homem, mas amo mais a natureza.
Além do que, a repetição fatigante do dia-a-dia anestesia e embrutece o espírito e sair do conforto e abrir-se para viver novas experiências transforma a alma, sendo esta a diferença entre um turista e um viajante.
Sendo o primeiro aquele que busca sempre lugares novos para se distrair do seu tédio enquanto que o segundo se desloca de um lugar ao outro para se transformar radicalmente nesta jornada.
Outra diferença entre ambos é que o viajante respeita e busca aprender com a cultura local, ao passo que o turista não.
Que ótimo texto! Me deu ainda mais vontade de conhecer a Patagônia.
Muito linda a maneira como você escreve sobre sua experiência, cheia de detalhes e encantos. O que seria de nós sem a beleza da natureza? Mas, para enxergá-la, é preciso ir além! Não tinha parado para pensar na diferença entre turista e viajante. Vou levar isso para a vida. Abraço, Ana!